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Prólogo

Giuseppe Campuzano

Toda peruanidade é um travestismo

Desde o princípio, os museus atuam como espaços de memória e reflexão, bem como de sacralização e dogmatização, onde as obras colecionadas surgem e circulam dentro de um cânon que as assimila ou deserda.

Como musas travestidas, incitamos a interpretação e desautorizamos a autoridade.

O travesti apresenta-se então como subversão da condição espúria que tanto o museu tradicional quanto os preconceitos sociais perpetuam. Assim, contextos históricos tão diferentes quanto o Peru pré-hispânico e o marco proposto por Magnus Hirschfeld durante a República de Weimar, admitem toda uma gama de possibilidades entre o masculino e o feminino.

Travesti pela recuperação de seu centro; nem timidez, nem protagonismo, mas equilíbrio; luta que só nós podemos livrar —a “vedete” como “soldada”.

O MUSEU TRAVESTI DO PERU nasce da necessidade de uma história própria —uma história inédita do Peru—, ensaiando uma arqueologia das maquiagens e uma filosofia dos corpos para então encenar uma elaboração de metáforas mais produtiva que qualquer catalogação excludente.

Museu “falso” —como o apelativo “falsa mulher” com que a linguagem careta nos adjetiva. Museu mascarado, cujas máscaras —a artesania, a fotocópia, a gigantografia, o “banner”, esses sistemas de produção em massa— não ocultam, mas ao contrário: mostram. Não camuflam: travestem.

O MUSEU TRAVESTI DO PERU se traveste através de três operações explícitas, e outra tácita, que recorre e insufla cada uma dessas instâncias.

I. O acervo explora o percurso do travestismo e de seus símbolos no contexto peruano. O propósito é revisar tanto os papéis que têm sido atribuídos convencionalmente ao travesti como aqueles que ele apropriou; e que subjazem à oposição complementária entre colonialismo —tanto imposição como herança— e encontro —suas imbricações e restaurações. Assim se postula uma análise tanto histórica como hermenêutica da iconografia e dos textos; e, evitando a esterilidade dos estudos disciplinares, se procede a um trabalho multidisciplinar que transcende a história linear —a que só permanece na natureza de seu suporte gráfico.

Diferentes disciplinas se misturam no interior do acervo, em uma viagem através dos tempos, espaços e fontes mais distintas —das culturas pré–incas às pós–industriais, das coleções de arte aos tablóides. O travesti é uma ponte entre a imagem e o texto, entre tempos e espaços, herdeiro de uma linhagem de mediadores —xamãs, deuses, virgens e santas—, que um dia voltarão a se encontrar. Um ritual liberado por seu próprio corpo.

Nove atributos travestis pautam um mostruário marcado por cruzamentos temporais que evidenciam o impossível deciframento do travesti.

Adornados —ávidas “misses” num concurso— encaramos a batalha pela tão esperada fatia de cidadania.

O autor compõe o acervo travestindo-se em seus textos, prestando tributo à obra também a partir de seu corpo, que então o entrega para que outros elaborem seus próprios.

Este acervo – o travesti manifesta-se barroco —maquiagem – máscaras, vestidos – disfarces, acessórios — um Peru que contém todos os mundos possíveis.

II. A linguagem encobre os textos —desde rascunhos até poesia— mas também os tecidos e coreografias, antigas e contemporâneas. Discurso aculturado e ícone polissêmico, como dois lados da mesma moeda, isso que Arguedas chamou “mistura”, como interrupção de toda origem tradicional.

Nesta generosidade de níveis, o discurso travesti corre o risco de se extraviar em sua própria terminologia. No entanto, o MUSEU TRAVESTI DO PERU se propõe como um glossário, ao organizar sistematicamente aquelas vozes que designaram e assinalaram o travesti.

O glossário é também o centro da circularidade proposta por Saussure. E logo Lacan acrescentou dizendo que nada existe além das aparências mutáveis do que se representa – do significante. Neste processo, o travesti não se perde, mas se enriquece: mais do que conceituar o travesti, buscamos expor sua indecifrável alteridade.

Nossos corpos; corpos indígenas cujo não-espaço é sempre ignorado; corpos colonizados pelo discurso que os rejeita; corpos feitos contemporâneos quando um legado os invade.

III. Dessa forma, a imprensa — usando e gerando ícones e resonâncias— escreveu uma biografia tão arbitrária quanto singular. Uma coleção de recortes — um quiosque repartido em quatro partes— constitue o arquivo. Museu que, travestido de jornal, possibilita um novo confronto entre texto e imagen na fazedura do kit de identidade do travesti cotidiano.

Posteriormente, este material é processado e apresentado. Se reconta uma perseguição tão indolente quanto a glosa dos jornais que a denuncia – como a ficha técnica que borra o próprio trabalho que vem esclarecer.

Ao resgatar o patrimônio travesti, o museu converte-se em ferramenta capaz de aumentar sua potência de agir. Não como pedido, mas como demanda por transformação e inclusão social. Do espaço simbólico–coletivo às liberdades individuais.

IV. O MUSEU TRAVESTI DO PERU é, finalmente, exploração da própria experiência do autor. Ser um travesti peruano é uma eterna transfiguração num país que, em sua busca de identidade, construção e contra-conquista, também se traveste —uma constante que já é sua essência. É o retorno da Inkarri que nunca parou de viajar, subterrânea, e que afinal chega para conciliar os aspectos paralelos de nossa interioridade.