DONATE

Tendências Humanas

Ed Cohen | Rutgers University

Politics and the economy are not things that exist, or errors, or illusions, or ideologies. They are things that do not exist and yet which are inscribed in reality and fall under a regime of truth dividing the true and the false.
(A política e a economia não são coisas que existem, nem erros, nem ilusões, nem ideologias. São coisas que não existem e que ainda assim estão inscritas na realidade e se enquadram em um regime da verdade, dividindo o verdadeiro e o falso.)
-Michel Foucault, “O nascimento da biopolítica” (20)

There is at least a risk that there will be no more human history unless humanity undertakes a radical reconsideration of itself.
(Existe ao menos o risco de que não haverá mais história humana a não ser que a humanidade faça uma reconsideração radical de si mesma.)
-Félix Guattari, As três ecologias

We need different ideas because we need different relationships.
(Precisamos de ideias diferentes porque precisamos de relações diferentes.)
-Raymond Williams, “Ideias de natureza”

1. Espécie Pensante

Até o século dezoito, os seres humanos, na realidade, não apareciam como uma espécie entre outras espécies. De fato, como Michel Foucault nos ensinou em A ordem das coisas, até a antiguidade clássica os humanos que residiam no domínio geoeconômico, epistemo-político, onto-teológico que denominamos “Ocidente” na verdade não habitavam o mesmo espaço de representação que outros seres vivos habitavam (Foucault 1970, 308). Não obstante, as coisas mudaram radicalmente durante o período em que Lineu nos denominou formalmente homo sapiens.1 Na décima edição do seu Systema Naturae (1758), onde o estimado taxonomista sueco estabeleceu a sua famosa nomenclatura binomial, ele empregou a especificação sapiens para qualificar o genus Homo. Ao fazer isto, ele nos designou o exemplo principal da sua classe inicial de primatas, os “mamíferos”, um táxon explicitamente metonímico (derivado de uma parte do corpo que está próxima ao coração), que também foi batizado por ele no mesmo texto.2 Ao tempo em que essa nova nomenclatura se formalizava, outra análise moderna de humanidade, “população”, também coalescia. Continuando com as inovações do século dezessete no campo da “aritmética política”, promovidas por John Graunt e William Petty, dentre outros, o termo “população” cristalizou-se em meados do século dezoito como uma tecnologia demográfica que considerava as agregações de pessoas como ativos vitais do estado, analisando os seus sujeitos “estatisticamente” (ou seja, literalmente como assunto “estatal”).3 Assim, a população passa a representar o povo de uma nação como um grupo vivente simultaneamente vulnerável e valioso, que requer governança ou, como diríamos na linguagem contemporânea, polícia.4

Como tanto a espécie humana quanto as populações humanas procuram evocar o modo como as agregações de seres humanos vivem—e morrem—juntos, faz sentido que esses conceitos tenham sido rapidamente articulados como dois lados da mesma moeda (particularmente tendo em conta que, no contexto econômico, o termo espécie também significa moeda). Foucault explica a importância desta conjunção sucintamente:

The dimension in which the population is immersed amongst other living beings appears and is sanctioned when, for the first time, men are no longer called ‘mankind (le genre humaine)’ and begin to be called the ‘human species (l’éspece humaine).’ With the emergence of mankind as a species, within a field of the definition of all living species, we can say that man appears in the first form of his integration within biology. (Foucault 2007,75)

(A dimensão em que a população se imersa entre outros seres vivos aparece e é sancionada quando, pela primeira vez, os homens já não são denominados ‘gênero humano (le genre humaine)’ e começam a ser chamados de ‘espécie humana (l’éspece humaine)’. Com a emergência do gênero humano como uma espécie, dentro do campo de definição de todas as espécies viventes, podemos dizer que o homem aparece na primeira forma da sua integração dentro da biologia.) (Foucault 2007, 75)

O termo população faz com que, para nós, a noção de espécies tenha sentido, uma maneira de classificar quem somos como seres vivos; por outro lado, o termo espécie representa os agrupamentos estatísticos em que as populações humanas figuram como classificações naturais. Portanto, se a espécie humana torna-se um elemento biológico, isto implica que os humanos pertencem ao campo de todas as espécies vivas e, consequentemente, por causa da sua articulação recíproca com a população como analisadora de poder estatal, o termo espécie também divide este campo de um modo específico—que, segundo Foucault, poderíamos chamar de política ou, de fato, bio-política.

Embora atualmente consideremos um fato a ideia de que a espécie humana naturalmente nos qualifica como organismos vivos, e talvez até achemos que esta aclamação taxonômica também denota a nossa “natureza animal”, a realidade é que o conceito de espécies torna o ser do “humano” bastante problemático, em parte porque a espécie em si constitui algo enigmático. Embora hoje utilizemos o termo muito promiscuamente, em frases familiares como “reprodução das espécies”, “ameaças às espécies”, “espécies companheiras”, “espécies em perigo” e “extinção das espécies”, por exemplo, a noção biológica de espécies está longe de ser fixa. Veementes debates sobre o significado de espécies, sobretudo entre aqueles que defendem modelos de seres vivos baseados na genética e na ecologia (para não falar daqueles que defendem modelos realistas e construtivistas do conhecimento), continuam a turvar a biociência.5Enquanto a distinção entre as espécies como táxon e as espécies como categoria procura reconciliar algumas dessas diferenças, tanto o significado quanto a importância de se pensar em espécies ainda provocam muitos rangidos de dentes epistemológicos. Dada esta incerteza epistemológica e ontológica, podemos questionar o que realmente fazemos quando equivalemos “ser humano” com “pertencer à espécie humana”. Que sentido fazemos de nós mesmos quando racionalizamos nestes termos? E que sentido é que estes termos fazem, então, de nós?

O emprego do termo espécies é uma forma peculiarmente ocidental de organizar os seres vivos. Embora o seu étimo latim seja derivado do verbo specere—olhar, observar, considerar ou contemplar—, o conceito que se traduz do termo latim, na realidade, vem da forma como Aristóteles revisa a noção de eidos de Platão. Claro que Platão tinha concebido eidos como uma ideia transcendente, imutável e perfeita, segundo a qual todo ser materializado constitui um desvio decisivo. Rejeitando a parcialidade etérea de Platão como algo metafisicamente improvável, Aristóteles remodela a noção de eidos sob dois aspectos importantes: primeiro, ele utiliza eidos para designar a forma que caracteriza a matéria (portanto, eidos contrastado com hyle); e, segundo, ele utiliza o termo para constituir a base para a classificação lógica (eidos contrastado com genos). Aristóteles, portanto, introduz uma “tension between eidos as individual existence and eidos as known in definition” (“tensão entre eidos como existência individual e eidos como se conhece na definição”)(Grene 1978, 126)6. Esta tensão constitutiva subscreve a extensão de eidos e a sua tradução latina, species, ao campo dos seres vivos, porque eidos e species juntam a atemporalidade da forma com a temporalidade da existência. Esta complicação—que é literal e etimologicamente um “ajuntamento”—engendra o que Henri Bergson denomima “[a] stable view taken of the instability of things” (“uma visão estável, tomada da instabilidade das coisas”)(Bérgson 1975, 324). Em outras palavras, eidos, como espécie, evita a fricção entre a continuidade e a mudança e, assim, abrange um paradoxo que nos parece uma marca essencial das formas de vida. E o faz afirmando que esta continuidade-na-mudança representa uma identidade-na-diferença, como o próprio Aristóteles propõe em Metafísica:

[T]hat which is different is different from something under some aspect, so there must be something the same in respect of which they differ. And this something the same is genus or species since everything that is differs either in genus or in species. (Aristotle 1998, 295; 1054b)

(Aquilo que é diferente é diferente de algo sob algum aspeto, por isso tem de haver algo igual naquilo em que eles se diferenciam. E este algo igual é gênero ou espécie, porque tudo o que há difere em gênero ou em espécie.) (Aristotle 1998, 295; 1054b)

Se a espécie designa a mesmice-na-diferença ou a diferença-na-mesmice,7que faz a espécie quando se analisa o campo do ser, e especialmente dos seres vivos? Para Aristóteles, eidos rearticula as relações entre aquilo que Platão distinguiu como “o sensato” e “o inteligível”, respectivamente os domínios do material e do imaterial, da crença e do conhecimento. Deste modo, torna estes famosos dualismos platônicos imanentes, ao fazer deles matéria. De fato, utilizando uma linguagem recentemente proposta por Jacques Rancière, poderíamos dizer que, segundo o pensamento de Aristóteles, eidos ou espécie constitui um “partage du sensible”—ou seja, uma divisão e partilha do sensato que, de facto, torna-se mais inteligível, mas somente de maneira particular (Rancière 2000).8

No uso de Rancière, o partage du sensible determina “the system of self-evident facts of sense perception that simultaneously discloses the existence of something in common and the delimitations that define the respective parts and positions within it” (Rancière 2004,12)9(“o sistema de fatos auto-evidentes de percepção sensual que simultaneamente revela a existência de algo em comum e as delimitações que definem as respetivas partes e posições dentro do mesmo”). Consequentemente, para Rancière, o partage du sensible subscreve “politics itself” (“a própria política”), na medida em que a política nomeia um “dissenso” através do qual “the system of forms of subjectification through which any order of distribution of bodies into functions corresponding to their ‘nature’ and places corresponding to their functions is undermined, [and] thrown back on its contingency” (Rancière 199,101) (“o sistema das formas de sujetificação através do qual qualquer ordem de distribuição de corpos em funções correspondentes à sua ‘natureza’ e a lugares correspondentes às suas funções é solapada [e] atirada de volta à sua contingência”). A partir do seu significado em francês, a palavra partage oferece uma importante visão acerca do trabalho da política, porque tem o duplo significado de dividir e partilhar. Deste modo, o termo partage de Rancière suscita “the political” (“o político”) como uma participação por parte daqueles que não têm parte alguma, participação alguma ou matéria apreciável alguma, a ponto de perturbar aquilo que se considera e é tido como “sensato”—palavra cuja definição em inglês, talvez mais do que no caso do seu cognato em francês, conota tanto “ser capaz de sentir” quanto “ser dotado de bom senso”. As divisões do sensato determinam o que é tido como inteligível e, portanto, aquilo que pode ser considerado valioso. Em outras palavras, um partage du sensible determina aquilo que deve ser levado em conta na tomada de decisões políticas que dividem o mundo partilhado. Além disso, quando reconhecemos que tais divisões não são segmentações naturais, senão decisões (do Latim de+caedere: cortar ou derrubar, cair de, mas também matar, massacrar), percebemos que elas constituem formas violentas de cortar ou executar que efetivam os conceitos e materializam valores. Ao pensar na política em termos do partage du sensible, enfatiza-se a forma como a violência congela—e é ocultada—dentro dos julgamentos morais que a definem e engendram, uma violência à qual o dissenso responde quando aqueles que foram previamente desvalorizados reformam a ordem política para afirmar a sua própria sensatez.

Embora reconhecendo a importância dessas visões, podemos ainda notar que Rancière enraíza tudo o que é político numa fricção inescapável entre a partição e a participação de que os humanos se ocupam, juntamente com os outros, os quais nós também denominamos implicitamente humanos—mesmo quando não os valorizamos como tal. Mas o que dizer daqueles partages que nos situam entre outros, entre aqueles outros que podem não ser nem humanos nem vitais, mas que não obstante formam parte do mundo sensato? Poderiam tais distinções revelar modalidades políticas? Poderiam as formas pelas quais dividimos e partilhamos o mundo resultar em obrigações políticas? Para começar a abordar estas questões, quero empurrar o sentido de política de Rancière em direção às noções de bio-política e de biopoder de Foucault—embora o próprio Rancière provavelmente protestaria (ver Ranciere 2000). No parágrafo de abertura das suas palestras, intituladas Security, Territory, Population (“Segurança, território, população”), de 1977-78, no Collège de France, Foucault oferece a seguinte definição:

By [bio-power] I mean a number of phenomena that seem to me quite significant, namely, the set of mechanisms through which the basic biological features of the human species became the object of a political strategy, of a general strategy of power, or, in other words, how starting in the eighteenth century, modern Western societies took on board the fundamental biological fact that human beings are a species. (2009,1)

(Por [biopoder] eu me refiro a vários fenômenos que me parecem bastante significativos, especificamente, o conjunto de mecanismos através do qual as características biológicas básicas da espécie humana tornaram-se objeto de uma estratégia política, de uma estratégia geral de poder ou, em outros termos, como as sociedades ocidentais modernas, a partir do século dezoito, passaram a aceitar o fato biológico fundamental de que os seres humanos são uma espécie. (2009,1)

Apesar de Foucault classificar o nosso ser-espécie como “fundamental biological fact” (“fato biológico fundamental”), o que aconteceria se considerássemos a divisão do mundo vital em espécies um partage du sensible, particularmente ao ponto de considerarmos a nós mesmos—independentemente de quem venha a “ser” este “nós”—membros pertencentes à espécie humana? E se considerássemos a divisão da espécie humana uma distribuição política das relações entre o sensato e o inteligível? E se considerássemos os discursos da biologia humana como uma política em outro plano?

Uma forma de se dar início a essa ponderação seria reconhecendo que nem todos aqueles que incluímos dentro da espécie humana consideram a personalidade uma prerrogativa exclusivamente humana. Marshall Sahlins, na sua recente dissertação sobre “the western illusion of human nature” (“a ilusão ocidental da natureza humana”), aponta que grande parte dos povos do mundo, no passado e no presente, considera “animals, plants [...] features of the landscape, celestial bodies, meteorological phenomena, and even certain artifacts [as] beings like themselves, persons with the attributes of humanity” (Sahlins 2008,88) (“os animais, as plantas [...] os elementos da paisagem, corpos celestiais, fenômenos meteorológicos e até certos artefatos [como] seres tais como eles próprios, pessoas com atributos de humanidade”). Refletindo sobre as cosmologias dos ameríndios da Amazônia, o antropólogo brasileiro Eduardo Viveiros de Castro afirma: “[S]elf references such as ‘people’ mean ‘person,’ not ‘member of the human species.’ [...] To say, then, that animals and spirits are people is to say that they are persons, and to attribute to non-humans the capabilities of conscious intentionality and ‘agency’ which define the position of the subject” (Viveiros de Castro 1998, 476) (“[A]uto-referências como ‘gente’ significam ‘pessoa’, não ‘membro da espécie humana’ [...] Dizer então que os animais e espíritos são gente é dizer que são pessoas; é atribuir aos não-humanos as capacidades de intencionalidade consciente e de ‘agência’ que definem a posição de sujeito”). Se a intencionalidade e a agência não pertencem exclusivamente aos humanos, então a premissa de que a espécie humana distingue-se naturalmente de outros seres, animados ou inanimados, poderia resultar exagerada ou pouco justificável. De fato, a ideia de que ser humano implica pertencer à espécie humana poderia representar um exemplo primordial daquilo que Bruno Latour, seguindo Viveiros de Castro, chama de “mononaturalismo”.

O mononaturalismo pressupõe a existência de uma natureza que nos une a todos. Produto da ontoteologia ocidental, e especialmente de uma mentalidade colonial que procurava universalizar o domínio do seu Deus em três pessoas, o mononaturalismo interpreta o mundo como um domínio universalmente conhecível, cujos representantes privilegiados frequentemente declamam em nome da ciência e na linguagem matemática. Ainda assim, os interesses do mononaturalismo revelam especulações específicas, em lugar de universais, dado que as perspectivas que ele define como verdade só podem ser alcançadas por aqueles que atuam sobre as mesmas em boa fé. Como explica Latour:

In fact, the importance of the term ‘nature’ does not stem from the particular character of the beings that it is supposed to have assembled and that are thought to belong to a particular domain of reality. The whole power of this term comes from the fact that it is always used in the singular; as ‘nature in general.’ When one appeals to the notion of nature, the assemblage that it authorizes counts for infinitely more than the ontological quality of ‘naturalness,’ whose origin it would guarantee. (Latour 2004, 28-29)

(De fato, a importância do termo ‘natureza’ não provém do caráter particular dos seres que ele supostamente reuniu e que, acredita-se, pertencem a um domínio particular da realidade. Todo o poder deste termo vem do fato de ele ser sempre empregado no singular, como ‘natureza em geral’. Quando se apela à noção de natureza, o agrupamento que ela autoriza representa infinitamente mais do que a qualidade ontológica de ‘naturalidade’, cuja origem ela garantiria.(Latour 2004, 28-29)

A natureza, na análise de Latour, refere-se às formas de se articular conexões, e não às coisas que são conectadas. A natureza-em-geral serve para legitimar uma destas formas de articulação como se fosse a única maneira através da qual os seres pudessem conectar-se. Invocando aqui a linguagem de Rancière, poderíamos dizer que o mononaturalismo descreve um partage du sensible particular, que—de maneira imperialista—reivindica o mundo, desconsiderando todos aqueles que partilham e participam dele de formas não- ou menos-exclusivas. O multinaturalismo, por outro lado, propõe que a singularidade da natureza não exausta, nem poderia exaustar, as possibilidades de ser ou de viver, seja no particular ou não. Ademais, o termo sugere que as contestações entre diferentes ‘naturezas’ constituem a matéria da política. Se a natureza em geral nos leva a supor que podemos saber quem somos afirmando a nossa identidade-na-diferença como uma espécie entre outras espécies, então talvez devêssemos considerar o que uma noção multinaturalista da humanidade poderia significar. Por outro lado, questionando a proposta mononaturalista, poderíamos ponderar: em primeiro lugar, como é que chegamos a crer que ‘pertencer à espécie humana’ tem o sentido exclusivo de ‘ser humano’?

Se não assumimos que a noção de ser-espécie exausta a nossa natureza, podemos começar a refletir sobre aquilo que ‘pertencer a uma espécie’ faz para e pelo “humano”.10Ao nível mais literal, ser uma espécie nos seculariza. Dentro do âmbito da Europa da idade moderna, a escatologia cristã influenciava o horizonte temporal da existência, tanto teológica quanto politicamente. A doutrina da ressurreição supunha uma bifurcação, não somente entre corpo e alma, mas também entre vida e vida após a morte, de modo que as labutas da alma humana, sob o véu terrestre das lágrimas, meramente prefigurava uma temporalidade eterna, durante a qual a sua “vida real” acontecia. Dentro das diversas implicações deste dogma, duas delas nos interessam particularmente: 1. o aspeto mais importante de ser humano não era que tivéssemos corpo (como em grande parte assumimos hoje), senão que fôssemos alma; e 2. a alma constituía não só o lado etéreo da personalidade, mas também a base terrenal para se pertencer politicamente. Entretanto, ao longo dos séculos dezesseis e dezessete, estes preceitos começaram a tremer diante das complexas reviravoltas religiosas, políticas, econômicas, tecnológicas, filosóficas e militares que marcaram o período. Obviamente, uma narração detalhada destas transformações excederia o meu escopo aqui hoje. Mas eu gostaria de destacar duas ramificações relevantes: 1. como argumenta Foucault, após o Tratado de Vestefália de 1648, o marco escatológico para a política europeia, que até esse ponto tinha imaginado um império cristão universal como sua apoteose, já não era algo incondicionalmente aceito; ao invés disto, a Europa ficou na história secular como uma coincidência de estados-nação da mesma geração “having a relation of utilization, colonization and domination to the rest of the world” (2009, 298) (“tendo uma relação de utilização, colonização e dominação com o resto do mundo”); e 2. o corpo substituiu a alma como a metonímia adequada para a subjetividade política, legal e econômica, de modo que “ser pessoa” passou a significar “ter um corpo”, uma nova filosofia política secular que C. B. Macpherson notoriamente denominou “possessive individualism” (Macpherson 1962) 11(“individualismo possessivo”).

A emersão da espécie humana como a encarnação coletiva desses corpos individuais naturalizou essa orientação secular da forma mais literal. Em outras palavras, demonstrou a importância etimológica do termo secular, proveniente do latim saeculum, que significa “a duração média da vida de um homem”, “tempo-de-vida” ou “geração” (em contraste com as valorizações não seculares do tempo-de-alma da escatologia cristã) (Marchant and Vernam 1892, 497). Anteriormente ao século dezoito, qualquer referência aos humanos como espécie—que certamente não era uma expressão prevalecente, dada a orientação cristã europeia—era no sentido lógico, e não biológico.12Ademais, como as espécies funcionavam como uma determinação categórica que colocava a identidade-na-diferença em primeiro plano, o termo se aplicava indiscriminadamente a todos os seres. Deste modo, Lineu, que foi quem primeiro denominou o nosso ser-espécie como tal, classificou tanto os minerais quanto as plantas e os animais como espécies, sem estabelecer qualquer diferença essencial entre formas animadas e inanimadas de espécies.13Contudo, quando a noção de espécies tornou-se distintivamente orgânica, tal como acontece na obra de Georges-Louis Leclerc, o Conde de Buffon (que se opôs explicitamente ao uso promíscuo de Lineu e argumentou que só os seres vivos poderiam constituir uma espécie), as espécies foram concebidas pela primeira vez como uma matéria de geração e de gerações vitalmente secular.14

Segundo Buffon, a disseminação temporal de uma espécie, a sua “faculdade de produzir uma criatura semelhante (semblable)” constitui “a verdadeira existência da espécie” (Buffon 1749, 2, 18). Se, para chegar a ser uma espécie, a espécie tem que resistir a uma multidão de sucessivas iterações, então poderia-se dizer que a geração de novos indivíduos constitui o seu âmago vital. Ademais, as espécies efetivamente existem como “a constante sucessão e a renovação ininterrupta dos indivíduos que a constituem” (Buffon 1753, 384). A partir deste ponto de vista, a reprodução sexual torna-se—novamente pela primeira vez—um meio de reprodução da “espécie”, ao invés de meramente gerar descendência.15 Assim, Buffon postula que: “the species then is nothing other than the constant succession of similar individuals who can reproduce themselves together”(1753, 4:386)16 (a espécie, portanto, não é senão a constante sucessão de indivíduos semelhantes que podem se reproduzir juntos”). Este critério reprodutivo oferece uma noção simultaneamente inclusiva e exclusiva das espécies: os indivíduos pertencem à mesma espécie se, e somente se, reproduzem crias que, no futuro, poderão também reproduzir crias—um critério que essencializa a diferença sexual, coloca em primeiro plano a noção desconcertante da hibridez e apresenta “a raça” como uma categoria vital.17 Uma vez que a espécie humana parece insistir e existir de geração em geração, ou seja, através das iterações corpóreas que tais formas de vida manifestam dentro e através do tempo, então a nossa “natureza secular” realmente passa a fazer sentido como partage du sensible.

O corolário não reconhecido deste partage putativamente natural sustenta que, como espécie, especiamos como indivíduos. Enquanto a espécie persiste através de gerações, ela se passa—ou seja, realmente acontece—através da passagem de indivíduos. De fato, no Premier Discours que introduziu o seu opus magnum, Buffon compromete-se epistemologicamente com o indivíduo como a única unidade natural “real”: “In nature only individuals really exist; genuses, orders and classes only exist in our imagination.”(1753,1:38) (“Na natureza, só os indivíduos realmente existem; os gêneros, as ordens e as classes só existem na nossa imaginação”). Por isso, como ele escreve num volume posterior: “All the similar individuals that exist on the surface of the globe are regarded as composing the species of these individuals.”(1753, 4:384) (“Todos os indivíduos semelhantes que existem na face da terra são vistos como componentes da espécie destes indivíduos”). O individualismo, portanto, constitui um pré-requisito lógico, bio-lógico, e histórico para a conceitualização da espécie humana como uma espécie. Ademais, no caso de Buffon, também foi um pré-requisito biográfico, porque, como observa Philip Sloan, antes de Buffon embarcar no seu Histoire Naturelle, ele realizou “intensive study in mathematics, Newtonian mechanics, English philosophy, and probability theory”(Sloan 1995,127) (“estudos intensivos de matemática, mecânica newtoniana, filosofia inglesa e teoria da probabilidade”). Quando Buffon incorpora o indivíduo na história natural como o meio através do qual a espécie é constituída, ele vincula as suas definições filosóficas anteriores à sua nova significância biológica e, assim, expande o domínio próprio do indivíduo desde a política até a natureza.

Surgido na Inglaterra do século dezessete como uma resposta política ao absolutismo monárquico e aos seus descontentamentos, o individualismo liberal afirmou uma base ontológica para negar as prerrogativas teologicamente legitimadas do soberano, ao defender a propriedade originária do indivíduo sobre o seu próprio corpo (e claro que os indivíduos eram, inevitavelmente, masculinos). Esta filosofia política sustenta que “o corpo” representa a propriedade natural do indivíduo, que, como John Locke declarou notoriamente, não pode ser alienada sem um devido processo legal. De fato, este preceito de auto-propriedade como base de direitos legais é o que a afirmação de habeas corpus pretende garantir até os dias atuais. Entretanto, apesar de ter disputado com sucesso as afirmações metafísicas da teologia política, baseando-se “naturalmente” numa ontologia política do corpo humano, que defendia que “o corpo” representa a “natureza” dentro de e para a pessoa, o individualismo também introduziu um novo questionamento—até então desconhecido na teologia política—na vida política: ou seja, uma vez que afirma-se que os seres humanos são indivíduos descontínuos que possuem os seus próprios corpos como sua propriedade, como é que se pode afirmar a sua coexistência coletiva como algo essencial, e ainda mais como propriedade essencial? Ou, pensando na pergunta de outra forma, como é que se pode entender a coletividade de um coletivo político se supomos que os membros do coletivo carregam dentro de si a sua individualidade como a sua propriedade mais essencial?

As possíveis respostas a esta pergunta são várias: a teoria dos contratos, a “natureza humana”, a economia, a sociedade e a cultura, dentre outras, todas surgiram durante o final dos séculos dezessete e dezoito como respostas ao dilema ontológico que o individualismo apresentou. Por trás, abaixo, ou talvez além de todas essas inúmeras tentativas de reconciliar a continuidade com—e dentro de—a individualidade, a “espécie humana” parece afetar a resolução natural na medida em que ela incorpora uma força vital que sustenta tanto a produção quanto a reprodução de indivíduos. Para entender como funciona essa reconciliação, considere por um momento o que o individualismo tenta fazer. Como estratégia política, o individualismo procura isolar as pessoas da biosfera e reorientar o seu ser “natural” para dentro, como se a “própria vida” estivesse espacial e temporalmente localizada dentro do seu invólucro epidérmico, uma encarnação política que notoriamente levou Norbert Elias a perguntar: “Is the body the vessel which holds the true self locked within it? Is the skin the frontier between ‘inside’ and ‘outside’? What in man is the capsule, and what the encapsulated?”(Elias 1982, 249) (“Será o corpo o vaso que contém o verdadeiro ego fechado lá dentro? Será a pele a fronteira entre ‘dentro’ e ‘fora’? O que será a cápsula dentro do homem, e o que será que é encapsulado?”). O individualismo propõe uma bifurcação, ou um partage, do universo ao redor do “corpo” (que é, afinal, o que o “ambi” de ambiente significa). O corpo, portanto, torna-se a metonímia mais apropriada para a pessoa, somente na medida em que não mantém qualquer outra relação essencial com qualquer outra coisa—família, parentesco, clã, tribo, classe social, propriedade, nação, território, etc. Por mais que esta ficção faça sentido lógica ou estrategicamente como reação política à prerrogativa monárquica, não o faz organísmica ou ecologicamente, quanto mais ontologicamente. Todos os seres vivos devem ser simultaneamente atados e abertos, localizados e distribuídos, enfocados e emaranhados. Além disso, os organismos só existem na medida em que coexistem—como revela, por exemplo, a nossa própria coexistência com as bactérias comensais que florescem nas nossas entranhas e pele. A ideia do indivíduo como uma unidade simultaneamente política e biológica, então, longe de constituir um fato natural, revela uma ligação artificial às suposições históricas e culturais nas quais se apoia.

Dito de outra forma: o individualismo propõe um partage du sensible material, que define o terreno da biopolítica. Ao especificar “o corpo” em vez da pessoa humana, quer dizer, ao propor o corpo como o lugar em que reside “o humano”, este partage conjura tanto a “própria vida”—ou aquilo que se poderia chamar a ipseidade da vida, a vida própria que pode ser contida ou pode se conter (Levinas 1978, 125)—quanto a “vida específica”—a vida localizada dentro do “corpo” como sua propriedade, que se reproduz nas suas relações com outros corpos e assim constitui uma espécie. Obviamente, esta formulação vital depende de uma duplicação implícita do “corpo humano” como um corpo individual e da espécie ao mesmo tempo, uma duplicação que estranhamente relembra e reformula o famoso ícone teológico-político de Kantorowicz, “os dois corpos do rei”, em termos manifestamente seculares (1957). Assim, o corpo do indivíduo oculta uma duplicidade intrínseca, precisamente na medida em que “ele” nos identifica, tanto individual quanto coletivamente, como humanos. A duplicidade moderna do corpo humano é um verdadeiro paradoxo, simultaneamente uma singularidade geral e uma generalidade singular. Se a consideramos como tal, começamos a discernir algumas das especulações econômicas, políticas e filosóficas no nosso próprio “especialismo” como humanos que subscrevem a nossa noção de que pertencemos à espécie humana.

2. Hábitos de Calcular

Em A ideologia alemã, Karl Marx declara que os humanos são os únicos seres vivos que “relacionam-se com” outros seres vivos, à diferença dos organismos não-humanos, que simplesmente são (Marx, Engels 1970,51). Ao postular esse relacionamento essencialmente humano, Marx extrapola o preceito de Hegel, que propõe que a consciência existe através—e como—a negação do imediatismo da natureza, antecipando assim a famosa declaração (hegeliana) de Bataille de que “animals are in the world like water in water” (“os animais estão no mundo como água dentro d’água”)(Bataille 1992,23). Para que não nos afoguemos na nossa animalidade, temos que relacionar-nos e, assim, tornar-nos humanos. As distintas formas que tais relações manifestam influenciam as condições nas quais os seres humanos convivem—com outros humanos e não-humanos—em momentos diferentes da história. No âmbito da modernidade, o trabalho assalariado constitui a forma econômica que as relações influenciadas pelo individualismo assumem. Ao contrário do feudalismo, que o precedeu, o qual supunha uma hierarquia metafísica entre as classes sociais, as propriedades e os níveis de pessoas e assumia uma continuidade material entre os servos e a terra, o trabalho assalariado desterritorializa esses nexos históricos para os reterritorializar como agregados de indivíduos auto-proprietários que contratualmente se auto-alienam em troca de remuneração e direitos políticos. No contexto desse horizonte jurídico-político-econômico, a população torna-se um meio tanto de contar quanto de contabilizar o bem vital que os indivíduos representam para o estado. Contudo, a população não é simplesmente uma questão de contar e, portanto, de contabilizar. Para que a população tenha uma significância estatística, ou seja, para que ela opere como analisadora do poder estatal, deve levar em conta as mudanças individuais que ocorrem na população ao longo do tempo.18 As taxas de nascimento, mortalidade, desemprego e morbidez são justamente isso: taxas de mudanças ao longo do tempo. Como tal, representam singularidades quantitativamente assimiladas como generalidades através de práticas de cálculos. Além do mais, uma vez que essas taxas são comparáveis entre si como cálculos, juntamente elas permitem evocar as taxas relativas de mudança entre duas ou mais populações e, portanto, implicitamente apontam para uma população ainda mais geral que, por sua vez, as contém a todas.19

A população, então, como a espécie, abrange tanto a produção quanto a reprodução. De fato, a população, tal como a espécie, só se produz quando se reproduz através de indivíduos ao longo do tempo. Esta conjunção marca o que Foucault descreve como “the entry of life into history, that is, the entry of phenomena particular to the life of the human species into the order of knowledge and power, into the sphere of political techniques” (1978, 143-4) (“a entrada da vida na história, ou seja, a entrada de fenômenos específicos à vida da espécie humana na ordem do conhecimento e do poder, na esfera de técnicas políticas”). Além disso, estas técnicas políticas representam o desejo de transformar os requisitos da vida humana em algo calculável—ou até governável—e assim passível à regulamentação econômica e biológica. Portanto, elas fazem da população uma metonímia vital para o termo espécies, ao tempo em que revelam “a economia” como o domínio natural no qual esses requisitos devem ser satisfeitos. Não surpreende, portanto, que a articulação seminal dessa perspectiva político-econômica apareça nos textos de um autor cuja familiaridade com Lineu e Buffon influenciou o seu pensamento profundamente: o inestimavelmente erudito Adam Smith. De fato, podemos considerar que o que melhor representa o golpe de gênio de Adam Smith não é a sua famosa “mão invisível”, mas a prestidigitação através da qual ele criou uma visão da economia política que entrelaça a população com a espécie e, assim, considera a economia uma biologia em outro plano. (Como veremos a seguir, a subsequente inversão desta fórmula também constitui outro famoso golpe de gênio, quando Darwin adapta a leitura que Malthus faz de Smith à teoria da evolução e, assim, representa a biologia como uma economia política em outro plano).

Para entender como a economia política clássica surge como um híbrido biopolítico, temos que considerar brevemente as suposições que Smith importa da história natural para o seu pensamento econômico (Shabas 2003). As dívidas que Smith tem para com Lineu são várias, já que Lineu não só inventou o sistema binomial que continua mapeando o campo dos organismos vivos e que, no processo, notoriamente nos apelidou de homo sapiens, mas também advogou pela autarquia nacional sueca, predicada numa política cameralista de substituição de importações. Além disso, ao promover a inovação e desenvolvimento agrícola racional como recurso vital para a nação, ele utilizou o seu trabalho como historiador natural para subscrever a sua política econômica (Koener 1999). Desta forma, além de embasar-se no texto seminal Systema Naturae (a que refere-se Smith no seu ensaio inicial “Of the External Senses” (“Sobre os sentidos externos”)), Smith também baseia-se no ensaio “Oeconomia Naturae” de Lineu (1749), que começa afirmando que: “By the oeconomy of nature we understand the all wise disposition of the Creator in relation to natural things, by which they are fitted to produce general ends and reciprocal uses. [...] Whosoever turns his attention to the things on this our terraqueous globe, must necessarily confess, that they are so connected, so chained together, that they all aim at the same end, and to this end a vast number of intermediate ends are subservient.” (“Por economia da natureza compreendemos toda sábia disposição do Criador em relação a coisas naturais, pelas quais são talhadas para produzir fins gerais e usos recíprocos. [...] Quem quer que preste atenção às coisas neste nosso globo terráqueo tem que confessar, necessariamente, que elas estão tão conectadas, tão acorrentadas, que todas apontam para o mesmo fim e que, para alcançar este fim, um grande número de fins intermediários são subservientes (Lineu 1759, 39-40). As ponderações de Lineu sobre essa relação útil e recíproca combina os seus interesses pela política e pela história natural de forma explícita e, assim, prefigura a noção de Smith de uma economia política auto-reguladora.20 O encadeamento que Lineu acredita retificar os fins intermediários de modo que “todos apontem para o mesmo fim” oferece uma analogia “natural” para a unidade dos fins que Smith atribui à economia de mercado, uma atribuição que, para muitos, ainda hoje parece “natural”, dado o atual reino do neoliberalismo.

Não surpreende, portanto, que as observações de Lineu acerca da “economia da natureza” explicitamente inspirem a fusão que Smith faz da história natural com a filosofia moral em A teoria dos sentimentos morais (publicado em 1759, o ano seguinte à denominação homo sapiens de Lineu). Na opinião de Smith, a economia da natureza:

not only endowed mankind with an appetite for the end which she [nature] proposes, but likewise with an appetite for the means by which alone this end can be brought about, for their own sakes, and independent of their tendency to produce it. Thus self-preservation, and the propagation of the species are the great ends which Nature seems to have proposed in the formation of all animals. Mankind are endowed with a desire of those ends, and an aversion to the contrary; with a love of life, and a dread of dissolution; with a desire of the continuance and perpetuity of the species, and with an aversion to the thoughts of its entire extinction. (Smith 2002,90)

(não só dotou a humanidade de um apetite para o fim que ela [a natureza] propôs, mas também de um apetite para os meios exclusivos através dos quais esse fim pode ser alcançado, para o seu próprio bem e independentemente da sua tendência a produzir isso. Assim, a autopreservação e a propagação das espécies são os grandes fins que a Natureza parece ter proposto na formação de todos os animais. A humanidade é dotada do desejo por esses fins e uma aversão ao contrário; de um amor pela vida e um pavor à dissolução; de um desejo de continuidade e perpetuidade da espécie e uma aversão à ideia da sua extinção total). (Smith 2002, 90)

Aqui o texto de Smith ata a noção da economia da natureza de Lineu com o critério reprodutivo para as espécies de Buffon (com o qual Smith também era bastante familiarizado21) para apresentar uma base natural para a sua teoria moral. Na opinião de Smith, o imperativo da espécie atua através dos indivíduos, “independent of their [own] tendency” (“independentemente da sua [própria] tendência”) e é precisamente esta agência, independente de agências individuais e que, não obstante, atua “for their own sakes” (“para o seu próprio bem”) que constitui a “economia da natureza”. É óbvio que esta formulação antecipa precisamente as ideias de Smith sobre a economia política, que ele publicaria em 1776, sob o título An Inquiry in the Nature and the Causes of the Wealth of Nations (“Uma investigação sobre a natureza e as causas da riqueza das nações”). Todavia, no texto posterior, é o mercado em vez da economia da natureza que, independentemente das tendências individuais da humanidade, e graças à “mão invisível”, produz fins que conduzem à continuação e perpetuação das espécies. Dada a combinação que Smith faz entre as forças naturais e o mercado, entre imperativos individuais e das espécies, podemos entender porque Foucault não só caracteriza a economia política como “the knowledge of processes that link together variations of wealth and variations of population” (“o conhecimento dos processos que vinculam as variações da riqueza com as variações da população”), mas também porque ele se refere à economia política como algo que circunscreve “the horizon of social naturalness” (2009. 350) (“o horizonte da naturalidade social”).

Smith descreve esse paradoxo da natureza social no seu capítulo “Of the Wages of Labor” (“Sobre os salários do proletariado”) em A riqueza das nações, onde ele sintetiza as suas ideias sobre a história natural e a economia política para explicar porque, tal como declama a sua primeira frase, “[t]he produce of labour constitutes the natural recompense or wages of labour”(1937,64) (“a produção da mão-de-obra constitui a recompensa natural ou os salários do proletariado”). A exposição que Smith faz sobre este modo de “recompensa natural” baseia-se em uma narrativa antropológica que vai de um “original state of things, which precedes both the appropriation of land and the accumulation of property, [in which] the whole produce of labor belongs to the laborer” (“estado original das coisas, que precede tanto a apropriação de terras quanto a acumulação de propriedade, [no qual] toda a produção do proletariado pertence ao proletário”) a uma divisão articulada da mão-de-obra, predicada em contratos entre “mestres” e “trabalhadores”. Dada a sua especulação jurídico-política nesta relação contratual, a mão-de-obra é sujeita a, e regulada por, dinâmicas de mercado que determinam “demand for those who live by their wages” (“a demanda por aqueles que vivem dos seus salários”). Nesta frase reveladora, vemos que Smith procura explicar como e porque os salários flutuam ao derrubar a distinção entre viver e trabalhar e receber salário, de modo que, para uma grande parte da população, viver torna-se sinônimo de receber salário, e vice-versa. Esta indistinção econômica então não somente afirma a elisão entre a “recompensa natural” e os “salários do proletariado”, mas também inversamente localiza a base política para a riqueza nacional na dimensão viva do proletariado—ou seja, na população de proletários, considerados uma subcategoria da espécie humana: “The most decisive mark of the prosperity of any country is the increase in the number of its inhabitants. [...] [I]n the present time [...] this increase is principally owing to [...] the great multiplication of the human species.” (1937, 70) (“A marca mais decisiva da prosperidade de um país é o aumento no número de seus habitantes. [...] Atualmente, [...] este aumento se deve principalmente à [...] grande multiplicação da espécie humana”).

Utilizando as estatísticas rudimentares disponíveis na época (de William Petty, Gregory King, Charles Davenant e Richard Price), Smith afirma a correlação entre as alterações populacionais e as alterações salariais. Além disso, ele afirma que, na medida em que as alterações populacionais derivam de flutuações naturais, o mesmo ocorre com as alterações salariais, mesmo quando o impacto salarial de tais alterações populacionais reflete sobre o sustento dos trabalhadores e de seus filhos. Desta forma, as dinâmicas de mercado do proletariado, segundo Smith, refletem os padrões naturais da reprodução que nós denominamos espécie:

Every species of animals naturally multiplies in proportion to the means of their subsistence, and no species can ever multiply beyond it. But in civilized society it is only among the inferior ranks of people that the scantiness of subsistence can set limits to the further multiplication of the human species; and it can do so in no other ways than by destroying a great part of the children which their fruitful marriages produce.

The liberal reward of labour, by enabling them to provide better for their children and consequently to bring up a greater number, naturally tends to widen and extend those limits. It deserves to be remarked too, that it necessarily does this as nearly as possible in the proportion which the demand for labour requires.

If this demand is continually increasing, the reward for labour must necessarily encourage in such a manner the marriage and multiplication of labourers, as may enable them to supply that continually increasing demand by a continually increasing population. […] It is in this manner that the demand for men, like that of any other commodity, necessarily regulates the production of men. (1937, 79-80)

(Cada espécie animal se multiplica proporcionalmente aos meios de subsistência de forma natural e nenhuma espécie poderá multiplicar-se além dos mesmos. Mas, numa sociedade civilizada, é somente entre as classes sociais inferiores que a escassez de subsistência poderá pôr limites à futura multiplicação da espécie humana; e o único modo pelo qual essa escassez pode fazer isto é destruindo grande parte das crianças que os seus matrimônios frutíferos produzirem.

A recompensa liberal do trabalho, permitindo que os trabalhadores consigam sustentar a sua família melhor e, consequentemente, criar mais filhos, tende a alargar e estender esses limites. Também merece ser observado que isto se faz o mais próximo possível na proporção que a demanda de trabalho requer. Se esta demanda aumenta continuamente, a recompensa pelo trabalho deve, necessariamente, motivar de tal maneira o matrimônio e a multiplicação de trabalhadores de modo a permitir que eles forneçam aquele contínuo aumento na demanda de uma população que está continuamente aumentando. [...] É deste modo que a demanda por pessoas, tal como por qualquer outra mercadoria, necessariamente regula a produção de homens). (1937, 79-80)

Nesta passagem importante, Smith descreve a transição de espécie a população, a reprodução humana, a produção de mercadoria, em cuja base a economia política postula que ela também representa a “economia da natureza.” Contudo, ao contrário de Lineu, a natureza da economia de Smith já não é inerente à “all wise disposition of the Creator in relation to natural things, by which they are fitted to produce general ends and reciprocal uses” (“disposição toda sábia do Criador em relação a coisas naturais, pelas quais elas são talhadas para produzir fins gerais e usos recíprocos”). Em vez disso, os fins gerais e os usos recíprocos produzidos pelas relações de salário determinam a reprodução natural da espécie humana, enquanto, primeiramente, o “desire of the continuance and perpetuity of the species” (“desejo da continuação e perpetuação da espécie” conduz à “multipli[cation] in proportion to the means of subsistence” (“multipli[cação] em proporção aos meios de subsistência”). Ou seja, segundo Adam Smith, a economia política entrelaça população e espécie como se as duas naturalmente pertencessem ao mesmo tecido social, um tecido social que ele chama de “o mercado”. Além do mais, com esta articulação de população e espécie, a economia política moderna “aparece”, ou melhor, representa-se, como o lócus “natural” dentro do qual a “espécie humana” necessariamente reside. Assim, ela se legitima como natureza através de outros meios—sem dúvida um flagrante exemplo de mononaturalismo.

Enquanto A riqueza das nações modela a natureza teórica da economia política a partir da confluência entre espécie e população, esta confluência é intensificada um quarto de século mais tarde, quando Thomas Robert Malthus alega ter elaborado “empiricamente” esse preceito no seu notoriamente pessimista Essay on the Principle of Population (1799) 22 (Ensaio sobre o princípio da população). Como discute David McNally: “Proceeding from the alleged law of population, [Malthus] arrived at a complete naturalization of capitalist social relations: private property, wage-labour, and class inequality became the inevitable outcomes of natural laws”(McNally 2000, 441-42) (“A partir da alegada lei da população, [Malthus] chega a uma completa naturalização de relações sociais capitalistas: propriedade privada, salário-trabalho e desigualdade social tornam-se consequências inevitáveis de leis naturais”). Não surpreende, portanto, o fato de Malthus generosamente dar crédito a Smith por lhe fornecer grande parte do fundamento conceitual para o seu argumento. Dadas as observações anteriormente citadas de Smith sobre a relação entre espécie e subsistência, isto parece ser mais do que justo. Contudo, apesar da sua evidente dívida para com a visão de Smith quanto à “multiplication in proportion to the means of subsistence” (“multiplicação proporcional aos meios de subsistência”), o que Malthus forçosamente adiciona à conjectura biopolítica de Smith é o cálculo de Newton (see Waterman 1998, 575-76). Ou seja, Malthus aplica a invenção matemática de Newton à noção de natureza social de Smith para calcular a razão entre a reprodução humana como espécie e a reprodução humana como população e, portanto, constitui essa razão como a racionalidade natural da política econômica (see Stengers 2005, 999). Embora não seja possível refletir aqui sobre as questões epistemológicas e metafísicas que estão envolvidas nesse desenvolvimento do cálculo de Newton, sobretudo no que diz respeito às contradições apresentadas pela geometria analítica de Descartes,23 basta dizer que Malthus baseia-se nos fluxos e nas flutuações de Newton para motivar a sua comparação tendenciosa entre a taxa de aumento no suprimento de alimentos e o número de bocas que se há de alimentar (see Waterman 1998, 582). Ao invocar o cálculo de Newton para derivar e legitimar a bio-lógica da economia política, Malthus faz do epônimo “princípio da população” um “fato” simultaneamente biológico e econômico que serve (até hoje) para calcular decisões políticas.24

Para se entender a motivação por trás da bio-lógica-político-econômica de Malthus, é importante relembrar que Malthus apresentou o seu Ensaio como uma resposta “melancólica” às “especulações” progressivas de William Godwin e do Marquês de Condorcet, afirmando que os meios através dos quais “population must be kept down to the level of subsistence [...] forms ... the strongest obstacle in the way to any very great future improvement of society”(1798, 3) (“a população deve ser mantida sob o nível de subsistência [...] constitui ... o obstáculo mais poderoso no caminho de qualquer grande progresso da sociedade no futuro”). A demonstração desta afirmação explicitamente política descansa na suposição de que os fenômenos encerrados nos conceitos de “população” e “subsistência” podem ser matematicamente comparados como duas funções que traçam as mudanças nestes fenômenos ao longo do tempo. O cálculo diferencial de Newton subscreve as reflexões de Malthus sobre a proporção entre essas duas taxas de mudança—uma proporcionalidade que Smith meramente afirma como auto-evidente—e legitima as famosas postulações de Malthus sobre a tensão irreconciliável entre duas tendências naturais antagônicas: a tendência da população a aumentar geometricamente e a tendência do suprimento de alimentos a aumentar aritmeticamente. Malthus, assim, invoca o cálculo de Newton precisamente para afirmar essas condições supostamente biológicas ou naturais da existência humana como os nossos inevitáveis limites político e econômico.

Quando Malthus propõe o seu famoso dilema, ele o faz por meio da aplicação de estratégias matemáticas desenvolvidas por Newton para calcular taxas instantâneas de alteração no movimento físico (dos planetas, por exemplo) às transformações vitais que surgem dentro das coletividades de seres humanos viventes, cuja coexistência coincide com o seu convívio.25Esse processo permite que Malthus, como Newton, apure a distinção conceitual entre uma agregação de pontos (ou seja, a população como uma série de dados) e um intervalo contínuo (ou seja, a população como espécie natural). Assim como Newton pôde criar uma continuidade ontológica entre os infinitos pontos que compõem uma linha ao afirmar que a linha traça o movimento de um ponto e, portanto, que “the differences between the points are differences that make no difference and thus make all the difference (“a diferença entre os pontos são diferenças que não fazem diferença e por isso fazem toda a diferença”), Malthus então concebe a população como os traços de alterações individuais ao longo do tempo. O cálculo de Malthus, portanto, faz das transformações infinitésimas da existência humana—as diferenças infinitas que não fazem diferença alguma e por isso fazem toda a diferença—funções de quatro variáveis: alimentação, trabalho, sexo e morte, cujos emaranhamentos temporais podem ser descritos como uma simples “lei natural”: seguindo as suas próprias tendências, a população excederia o suprimento de alimentos. Além do mais, no caso de Malthus, a aplicação desta lei natural permitiu que ele legitimasse as suas alegações políticas e econômicas que, dadas as implacáveis necessidades biológicas da espécie humana, o ato de oferecer ajuda extradomiciliar aos outros aumentaria “naturalmente” o sofrimento e a miséria (apesar de este argumento contar com muito pouco respaldo empírico).

Hoje percebemos que a bio-lógica tendenciosa de Malthus subscreve o empreendimento da economia política na medida em que representa os riscos e as vulnerabilidades inerentes a uma população viva como calculável e, portanto, previsível (embora não seja evidentemente evitável).26Contudo, enquanto Malthus funda a ciência da economia representando a natureza humana e a biologia humana como algo que tende à previsibilidade calculável, esta estratégia econômica em si constitui, como Bruno Latour e Vincent Lépinay recentemente observaram, uma resposta afetiva ou psicológica ao temor e, assim, motiva aquilo que chamam uma “entirely psychological passage from uncertainty to probability” (Latour, Lépinay 2010,63) (“passagem completamente psicológica da incerteza à probabilidade”). Para que esta passagem faça sentido, o Ensaio de Malthus combina a população com a espécie, como se esta combinação representasse um fato natural, e depois utiliza a análise matemática da população para fazer alegações sobre as condições naturais dentro das quais os humanos necessariamente coexistem. Assim, o termo população parece evidenciar as dinâmicas dos seres-espécie como uma questão de contar e contabilizar a coexistência humana, tanto com outros humanos quanto com outros outros, na medida em que estas relações são naturalmente reguladas pelos meios econômicos. Ainda assim, é importante recordar que a “economia da natureza” não descreve como a natureza realmente é, ela afirma uma versão particular daquilo que Latour chama “nature-in-general” (“a natureza-em-geral”) como uma estratégia para universalizar as suposições para com as quais está endividada. Neste caso, a noção de que os seres humanos pertencem à espécie humana propõe uma maneira de dividir o mundo sensato que exclui os hábitos de raciocínio não-calculistas, que não presumem que população e espécie signifiquem a mesma coisa ou das mesmas formas. Não obstante, a força desta equivalência pouco reconhecida continua a nos eludir, em parte porque esses hábitos calculistas nos parecem agora ser a própria natureza de quem somos.

Coda: Tendências Especiais

Uma das consequências mais vitais do cálculo putativamente natural de Malthus surge quando ele o aplica à própria biociência, através da teoria da evolução de Charles Darwin. Como os historiadores da evolução frequentemente observam, Darwin explicitamente incorpora a bio-lógica política e econômica da população de Malthus à sua teoria da evolução. De fato, Darwin em várias ocasiões dá crédito a Malthus por ter inspirado a sua síntese dinâmica da teoria evolucionária, como, por exemplo, quando ele declara em On the Origin of Species by Means of Natural Selection (1859) (Sobre a origem das espécies por meio da seleção natural): “It is the doctrine of Malthus applied with manifold force to the whole animal and vegetable kingdoms”(Darwin 1859, 63)27 (“É a doutrina de Malthus aplicada com força variada a todo o reino animal e vegetal”). O eminente biólogo do século vinte, Ernst Mayr, enquadrou nitidamente a dívida que Darwin tinha para com Malthus em termos daquilo que Mayr chama “population thinking”(Mayr 1989,176) (“raciocínio da população”), porque o avanço conceitual de Darwin propõe que uma espécie incorpora, como escreve em Origem das espécies, “the full effects of many slight variations, accumulated during an almost infinite number of generations”(Darwin 1859, 481) (“a totalidade dos efeitos de diversas pequenas variações, acumuladas ao longo de um número quase infinito de gerações”). Quando estas pequenas variações que preponderam através de gerações quase infinitas são consideradas em termos de população, aparecem como aquilo que Darwin e Alfred Wallace caracterizaram, no título da sua famosa obra, redigida por eles em co-autoria, “the tendency of species towards variation”(Darwin, Wallace 1858, 46-50) (“a tendência das espécies à variação”). Embora o próprio Darwin fosse bastante nominalista com a noção de espécies,28 notadamente percebia que não podia oferecer uma definição bem delimitada das espécies, visto que, por definição, as espécies evoluem. Mesmo assim, as dúvidas sobre as implicações políticas da sua genealogia intelectual abundam—incluindo as de Marx e Engels, no seu tempo, e as de vários estudiosos subsequentes.29

Independentemente da nossa opinião sobre a especulação de Darwin na economia política burguesa (que foi bastante literal, já que ele viveu da sua herança), podemos dizer que a bio-lógica política da evolução persiste na medida em que Darwin funde espécie com população e, portanto, baseia-se na operação matemática pouco reconhecida que ele toma de Newton, via Malthus, que extrapola tendências evolutivas de conjuntos de indivíduos.30 A fim de conceituar distintas tendências à especiação de variações organísmicas infinitesimais ao longo do tempo, Darwin baseia-se na maneira em que Malthus utiliza o cálculo infinitesimal de Newton como uma lógica natural que faz da mudança uma continuidade, incorporando assim a prestidigitação matemática e ontológica simultaneamente.31 Quando Darwin e Malthus utilizam o preceito matemático de Newton para traduzir as mudanças infinitesimais nas formas de vida determinantes, ambos elidem várias diferenças biológicas que os seres vivos evidenciam até que estas diferenças pareçam não fazer diferença vital alguma e a sua elisão faça toda a diferença. Dito de forma sucinta, poderíamos dizer que tanto Malthus quanto Darwin tratam a população como uma “caixa preta” na qual os indivíduos entram e a espécie humana sai e onde a mudança desaparece na escuridão conceitual que reside entre os dois.

Então por que se tenta iluminar essa caixa preta? Queira ou não, as nossas políticas econômicas, militares e governamentais são atualmente calculadas, quase exclusivamente, através de paradigmas de população. Mais do que meramente evidenciar um raciocínio político subjacente, poderíamos dizer que estas formas de processo decisório efetivam uma bio-lógica política que considera as espécies e a população um emaranhado de propriedades e, consequentemente, afetam inúmeros seres vivos de forma incalculável—humanos ou não. À medida em que os estados, as corporações e as ONGs, por exemplo, vão tomando decisões a respeito das vidas das pessoas e de outros seres vivos em termos de populações, vistas como conjuntos vitais, eles materializam, sem refletir, as suposições políticas e econômicas que o raciocínio da população (“population thinking”) interpreta como natural ou até como se fosse a nossa natureza. Além disso, a suposição mononaturalista subjacente a este raciocínio político supõe que a caracterização ocidental dos seres humanos como “pertencentes à espécie humana” legitimamente garante esse cálculo, já que descreve a forma mais natural de ser humano. No entanto, se refletimos sobre a conjunção população-espécie como uma realização histórica em vez de natural, começamos a compreender que esta ideia só coalesceu na Europa durante os séculos dezoito e dezenove como uma estratégia político-econômica para dividir e partilhar o mundo humano—o capitalismo, em resumo—que depois transformou-se em uma maneira putativamente natural de dividir e repartir o mundo da vida. Ademais, à medida em que começamos a entender que a moeda da população-espécie abrange a matemática, a história natural, a economia política e a filosofia política liberal, percebemos como isto legitima e seculariza a humanidade como uma forma de vida viável.

Poderíamos dizer, portanto, que a economia política fornece a bio-lógica do capitalismo e que a espécie humana faz com que esta bio-lógica faça sentido como o cálculo dominante pelo qual particionamos e participamos no mundo. Ou, para utilizar a linguagem de Rancière: sob o capitalismo, a economia política serve como um partage du sensible bio-político. Se a sensatez que a economia política subscreve possibilita uma mudança psicológica da incerteza à probabilidade, como Latour e Lépinay sugerem, o faz através da submissão de processos vitais a cálculos que matematicamente excluem as variações incalculáveis como insignificantes ou sem valor algum. De fato, isto foi precisamente o que a extensão que Malthus fez do cálculo de Newton sobre o raciocínio da população (population thinking) fez: Malthus alegou que as tendências humanas são totalmente calculáveis e que esta calculabilidade justificaria certas políticas sociais, neste caso eliminando a ajuda extradomiciliar aos pobres. Porém, tendências não precisam ser totalizadas pelos seus cálculos, tal como as espécies não têm que ser totalizadas pelas suas populações.

No seu sentido etimológico, a tendência vem do termo latim tendere, estender. Portanto, as tendências por definição abrangem as tensões que desafiam fronteiras fixas e fórmulas estabelecidas. Se as espécies constituem tendências, como nos indica a teoria evolucionária pós-darwiniana, elas literalmente nomeiam a tensão que devem conter: ou seja, devem abranger aquilo que permanece o mesmo ao tempo em que muda e então incorporar esta mesmice-na-diferença dentro de si mesmas, como algo propriamente seu. A tensão entre a mesmice e a diferença significa que as espécies devem inevitavelmente ser propriamente impróprias, ou seja, que devem estar diferindo de si mesmas ou evoluindo—uma auto-diferença que a fusão de espécie com população oculta ou omite. Mesmo assim, essa tensão, essa tendência, tem que permanecer como o substrato incalculável tanto da nossa vitalidade quanto da nossa humanidade se podemos ter alguma esperança de que continuaremos a evoluir. Deste modo, talvez seja preciso entender porque, em vez de investir tanto na ideia de que “ser humano” significa “pertencer à espécie humana”, poderíamos considerar que somos as tendências humanas que nos tornamos.

 


Essay translated by Vanessa Ceia. Notes Translated by Frederico Freitas.

 


Ed Cohen teaches Modern Thought in the Department of Women's and Gender Studies at Rutgers University. His most recent book is A Body Worth Defending: Immunity, Biopolitics and the Apotheosis of the Modern Body (Duke 2009).

Notas

1 Carlos Lineu [Carolus Linnaeus] (1806). Para um excelente levantamento das teorias de espécie de Lineu e Buffon, especialmente no que diz respeito a história natural dos humanos, veja Phillip Sloan (1995) que proporciona uma explicação cuidadosa das taxonomias cambiantes nos dois autores, além de uma discussão sobre as categorizações oferecidas pelo taxonomista inglês do final do séxulo XVII John Ray. Sloan explica que Lineu veio a fixar o sistema de nomenclatura binomial somente na décima edição do Systema Naturae (1758), assim confirmando o homo sapiens como uma espécie distinta entre as outras espécies. Anteriormente, Lineu havia classificado os humanos dentro do gênero Homo, cuja “distinção específica” era a razão (identificada pela expressão délfica, ainda que em latim: Nosce te ipsum). Tal classificação era modulada por quatro “distinções varietais” definidas pela geografia e cor da pele: europaeus albus, americanus rubescens, asiaticus fuscus e africanus niger. Na décima edição, quando o táxion binominal foi sido fixado, o Homo sapiens incluiu as varietais precedentes além de algumas novas como ferus (selvagem), troglodytes, (noturna) e monstruosa (com mais sub-variedades).

A clássica comparação entre as várias adições e emendas de edição a edição aparece em T. Bendyshe, “The Anthropology of Linnaeus”, (1865), que inclui uma “nota singular sobre o homem” que ele identifica como tendo sido adicionada à sexta edição do Systema Naturae em 1746. A nota elabora o pensamento de Lineu:

Conhece-te a ti mesmo teologicamente; que tu és criado com uma alma imortal, à imagem de Deus.
Moralmente; que tu somente és abençoado com uma alma racional para a glória do Criador.
Naturalmente; que tu és o senhor dos animais, e o fim último da criação, por cujo benefício todas as outras coisas foram feitas.
Fisiologicamente; que tu és a mais perfeita e magnífica máquina.
Dietéticamente; que a natureza paterna deu a ti animais para serem teus para uso e alimento.
Patologicamente, que frágil bolha tu és, e exposta a mil calamidades.
Se entendes estas coisas, tu és um homem, e um gênero muito distinto de todos os outros (423–24).

Uma década mais tarde na décima edição, quando Lineu adiciona sapiens a Homo, essa nota explode em uma disquisição de várias páginas (426-528) que, de maneira verborrágica, expõe a nossa importância “especial”. Para nosso propósitos, o aspecto mais relevante aparece sob o título “Naturalmente” que é circundado pelas seguintes citações:

Que tu, o milagre da audácia da natureza, o chefe dos animais, por cujo benefício a natureza produziu tudo, és um animal que chora, ri, canta, fala, é dócil, julga, um animal muito sábio, mas delicado, nu, desarmado por natureza, exposto ao menosprezo da fortuna, dependente da assistência de outros, de mentes ansiosas, e desejoso de proteção, de espírito hesitante, obstinado na esperança, impertinente na vida, vagaroso ao ganhar sabedoria. [...] Porém, o quão longe nosso infortúnio nos carrega; acumulamos perigos, corremos em direção ao desconhecido, como bestas selvagens matamos pessoas que desconhecemos; pedimos por ventos favoráveis para que possamos ser levados à guerra; a terra, grande o bastante não parecer ser suficiente para as nossas mortes”, Sêneca. “Contra outros animais seres diferentes se unem, mas a maioria dos infortúnios do homem vem do homem”, Plínio (427).

2 Sobre a defesa de Lineu da amamentação, veja Londa Schiebinger (1993).

3 Veja Peter Buck (1982) e (1977), Stigler (1986), Porter (1986), e Hacking (1990).

4 Sobre Foulcault e polícia, veja também a introdução de Cohen, A Body Worth Defending, (2009).

5 Para uma visão global dos debates veja o verbete “species” na Stanford Encyclopedia of Philosophy: http://plato.stanford.edu/entries/species/. Para um tratamento mais extenso de cada posição, veja Stamos (2003); para uma defesa polêmica de espécie, veja LaPorte (2007); sobre humanos como uma espécie, veja Dupré (2002).

6 Sloan nota que eidos designa tanto um termo de lógica ou classificação (espécie em contraste com gênero) e um aspecto do hilomorfismo onde ele contrasta com hyle. Nos escritos biológicos de Aristóteles eidos representa “o dinâmico princípio da vida, um imanente princípio de organização e vitalidade que assume o papel do formal, final e causas eficientes de toda a atividade orgânica.(1987, 104). Veja também Balme (1962), Grene (1974) e Mouracade (2008).

7 Veja a crítica de Deleuze à noção aristotélica de diferença na distinção de espécies e gênero em Difference and Repetition (1994). Espécie também carrega consigo o significado de sua etimologia latina (de specere, olhar, observar) como em “aspecto visível” ou “aparência”. No pensamento escolástico, espécie frequentemente refere-se a imagem de algo em oposição a sua essência, ou até mesmo a um espectro ou aparição; veja Zirkle (1959). Em “Special Being”, Giorgio Agamben conjectura sobre o significado medieval de “espécie” como a imagem que aparece em um espelho e a maneira que isto antecipa modernas conceitualizações do humano (por exemplo, como encarnado no estágio do espelho de Lacan) (2207). Na liturgia católica a comunhão era considerada “under les deux espèces”: pão e vinho eram ambos si mesmos e o corpo e sangue de Cristo. Sloan nota: “Tradicionalmente o termo espécie possuía vários usos comuns, nenhum dos quais capturava o significado presente no uso que Buffon fazia do termo. Usos tradicionais incluíam aquele de um datum de sentido; um termo que denota um aspecto externo; um universal aplicado a mais de um indivíduo; ou um dos cinco predicados da lógica tradicional” (1995: 131). Compare com definições do começo do século XVIII na Cyclopedia de Chambers (1741) e no Lexicon Technicum de Harris (1741).

8 Sobre as implicações do conceito, veja Pangia (2010).

9 Sinônimos para sensible: dócil, apreciável, notável, palpável, perceptível, sensitivo, suscetível.

10 Para uma recente reflexão sobre as implicações contemporâneas do ser-espécie, veja Dillon and Lobo-Guerrero (2009).

11 Para uma elaboração de como “o corpo” torna-se uma metonímia própria para a pessoa, veja Cohen (2009).

12 Dado este enquadramento histórico, não é surpreendente que as mais famosas justificativas para a personitude moderna, que de um modo ou de outro subscrevem noções liberais e neoliberais de humanidade e individualidade, não se baseiem na suposição de que os humanos constituem uma espécie biológica. Descartes não invoca a ideia, tampouco Hobbes. John Locke usa a frase “espécie humana” exatas três vezes no Ensaio acerca do Entendimento Humano, mas não para revelar algo sobre a nossa natureza biológica compartilhada, mas como um caso exemplar de nomeação (no Livro II, Capítulo VII, “Sobre o Nome das Substâncias”). Contudo, em um de seus primeiros escritos (não publicado durante sua vida), Ensaios acerca da Lei da Natureza (1663-4), Locke oferece um solitário exemplo que é maravilhosamente efetivo: “A herança da espécie humana como um todo é sempre uma e a mesma, e não cresce com o aumento da população”. Enquanto que no contexto a afirmação simplesmente oferece evidência para sua premissa de que o auto-interesse não pode subscrever a lei natural, essa confluência entre espécie e população proposta aqui por Locke também afirma uma coação “natural” (inevitável e imutável) o que força os humanos a competirem por recursos limitados. Desse modo ela antecipa a fértil elaboração do nexo bio-político-econômico proposta no século seguinte por Adam Smith e Robert Malthus, como veremos a seguir. Em fins do século XVII, contudo, esta elaboração não se popularizou em parte porque “população” e “espécie” ainda não haviam fornecido a base para a articulação dos seres vivos simultaneamente como indivíduos e conjuntos (o mesmo problema, claro, que o Leviatã de Hobbes tentaria resolver).

13 O título completo do texto de Lineu era Systema naturae sive regna tria natura, o “sistema da natureza ou os três reinos da natureza” —  mineral, vegetal e animal.

14 Veja Sloan (1995), (1976) e (1985); Farber (1972), Lovejoy 1959.

15 Se considerarmos que essa valência reprodutiva introduz a possibilidade de conceber o indivíduo e a população como “relacionados” através da produção e da reprodução, então nós entendemos melhor porque Foucault afirma que a sexualidade existe no e como interface da “anatomia política do corpo humano” e da “biopolítica das populações”, a primeira focada no “corpo como máquina” e a segunda no “corpo espécie, o corpo imbuído de mecanismos de vida e servindo com a base para processos biológicos” (Foucault 1978, 139).

16 Estes critérios também encontraram a crítica de Buffon sobre o uso mais expansivo de espécie de Lineu que incluía tanto seres animados quanto inanimados. A citação continua: “está claro que esta denominação deve apenas estender-se aos animais e plantas e é por um abuso de termos ou ideias que taxônomos [nomenclateurs] usam-na para designar diferentes tipos de minerais”.

17 A exposição de Buffon do ideal reprodutivo ocorreu não coincidentemente na discussão do cavalo e do asno. A esterilidade da prole — a mula — alimentou discussões sobre hibridismo nos dois séculos seguintes. Sobre Buffon e raça, veja Hudson (1996), Sloan (1973), Curran (2009).

18 Foucault discute a mudança na população pensando entre o final do século XVII e meados do XIX em relação à transição na política econômica dos mercantilistas aos économistes. Enquanto que os primeiros eram preocupados com “números, trabalhadores, e docilidade, ou melhor, grandes números e trabalhadores dóceis”, para os últimos “a população não possui um valor absoluto, mas simplesmente um valor relativo” (2007, 344–5).

19 Por exemplo, na Europa do século XVIII, tecnologias populacionais buscavam habilitar os estados a avaliar as relações fundamentais de seus súditos uns com os outros da maneira como os próprios estados davam forma a suas relações com outros estados Europeus. Esse relacionar relacional assumiu especial importância como um índice de suas capacidades defensivas, já que na Europa pós Vestfália, a paridade dos estados supunha uma “balança de poderes” que era equivalente a um permanente estado de preparação para a guerra (Foucault 2007, 290-306).

20 De fato, Lineu desenvolveu sua famosa nomenclatura binomial precisamente para facilitar a habilidade de seus alunos em discernir as plantas das quais vacas, porcos e ovelhas se alimentavam para, desse modo, aprimorar a criação de animais, e não apenas para aprimorar um sistema formal de classificação (Koener 1999, 101–104).

21 Smith cita Buffon em sua primeira publicação, “Letter to the Authors of the Edinburgh Review,” (1811). Sobre a carta, veja Lomonaco (2002).

22 A primeira edição do Ensaio utilizou-se de limitados dados de arquivo e estatísticos, baseando-se principalmente em suas premissas teóricas para legitimar o argumento. Nas edições subsequentes, Malthus trabalhou para suplementar esta escassez estatística e preencheu os textos com provas; contudo no fim, a evidência necessariamente seguia as suposições em cuja sequência se segue.

23 Malthus era um “newtoniano” para quem os dados empíricos supostamente forneciam o chão para a formulação teórica. Contudo, ele criticava Godwin e Condorcet como cartesianos que buscavam forçar os dados dentro da teoria. Veja Waltzer (1987), Winch (1996) e Cohen (1994). A literatura sobre o cálculo de Newton é gigantesca. O texto básico é: Isaac Newton, The Method of Fluxions and Infinite Series; with its Application to the Geometry of Curved Lines (1736). Veja Kitchner (1973), Arthur (1995), Guicciardini (2006), Ramati (2001); J. E. McGuire (2007). Como demonstrado pelo artigo de Kitchner de 1973, “Fluxions”, Newton estava cada vez mais ansioso para legitimar sua técnica de álgebra em termos geométricos de modo a eliminar sua dependência dos infinitesimais cuja existência complicava sua metafísica e sua teologia. Assim, no Principia ele desenvolve o método de “primeiras e últimas razões” como um meio de providenciar uma explicação geométrica para o uso do cálculo. Em seu ensaio “É Deus um Matemático?” (1966), Hans Jonas argumenta que a aplicação de álgebra e geometria clássica desencadeia uma mudança de formas para fórmulas e, desse modo, habilita a geometria analítica e o cálculo “a representar a própria forma geométrica como uma função de variáveis, que é uma fase em seu crescimento contínuo para formular as leis de sua ‘geração’ (68).

24 McNally (2000) defende que foi precisamente o newtonianismo de Malthus que possibilitou sua teoria de população a ser tomada como “lei natural” — e desse modo como uma partage du sensible, defendo eu — dentro do discurso político.

25 Veja por exemplo Observations on the Effects of the Corn Laws  de Malthus: “Muitas das questões, tanto em moral quanto em política, parecem ser sobre a natureza dos problemas de de maximis et minimis em fluxões; em que há sempre um ponto onde um certo efeito é maior, enquanto que nos dois lados deste ponto o efeito diminui gradualmente”.

26 Em sua Introductory Lectures on Political Economy (1847, apresentadas em 1831), Richard Whately nota que a junção que o uso de “tendência” em Malthus implica:

De novo, a doutrina, maliciosa como é, imagino eu, sem fundamento, é que já que há uma tendência na população para aumentar mais rápido do que os meios de subsistência, logo, deve esperar-se que a pressão da população contra a subsistência torne-se cada vez maior a cada geração sucessiva (a menos que recorra-se a novas e extraordinárias medidas,) e assim, produziria-se uma diminuição progressiva no bem estar humano; — esta doutrina que alguns mantém em desafio ao fato de que todos os países civilizados possuem uma proporção maior de riqueza do que antigamente, — pode ser conectada principalmente a uma ambiguidade despercebida na palavra ‘tendência’, que forma a parte do meio do argumento. Por uma ‘tendência’ a um certo resultado  muitas vezes entende-se ‘a existência de um causa a qual, se operando sem restrições, produziria aquele resultado.’ [...] Mas as vezes novamente, ‘uma tendência a um certo resultado’ é entendida como significando ‘a existência de um estado de coisas que leva com que se espere que aquele resultado aconteça.’ (231-232)

27 Sobre a relação de Darwin e Malthus, veja Young (1985), Vorzimmer (1969), Herbert (1971), Bowler (1976), Ariew (2007). Em 1839, após ler Malthus, Darwin cita o Ensaio no seguinte trecho em seu “Notebook E”:

‘E desde que o mundo começou, as causas da população e depopulação têm sido provavelmente tão constantes quanto quaisquer das leis da natureza com as quais estamos familiarizados’. — isto se aplica a uma espécie — eu aplicaria isto não apenas à população e depopulação, mas ao extermínio e produção de novas formas. — seu número e correlação. (1859, 3)

28 Veja o questionamento de Darwin na Origem das Espécies (1859):

A partir dessas observações será notado que eu olho para o termo espécie como dado arbitrariamente, pelo bem da conveniência, a um conjunto de indivíduos muito semelhantes entre si, e que tal termo não difere essencialmente de “variedade”, que é dado a formas menos distintas e flutuantes. Novamente, o termo variedade, em comparação com meras diferenças individuais, também é aplicado arbitrariamente, e pelo mero benefício da conveniência. (52)

É desnecessário dizer que, como com todas as coisas relacionadas a Darwin, há muita controvérsia sobre a posição de Darwin em relação a “espécie”. Para um resumo detalhado da história dos argumentos e uma tentativa de resolvê-los, veja Stamos (2007).

 

29 Em uma carta a Engels de 18 de junho de 1862, Marx escreveu:

Me diverte perceber que Darwin, em quem eu tenho dado uma outra olhada, deveria dizer que ele também aplica a teoria ‘malthusiana’ a plantas e animais, como se no caso do Sr. Malthus a coisa toda não se baseasse em ela não ser aplicada a plantas e animais, mas apenas — em sua progressão geométrica — a humanos contra plantas e animais. É impressionante como Darwin redescobre, entre as bestas e plantas, a sociedade da Inglaterra; em sua divisão de trabalho, competição, abertura de novos mercados, ‘invenções’ e ‘luta pela existência’ malthusiana’. É o bellum omnium contra omnes de Hobbes, e lembra a Fenomenologia de Hegel, em que a sociedade civil é figurada como um ‘reino animal intelectual’, enquanto que em Darwin, o reino animal figura como a sociedade civil.

Friedrich Engels em uma carta de 12 de novembro de 1875 a P.L. Lavrov, respondendo a um artigo que Lavrov havia enviado a Engels:

A teoria darwiniana de luta pela existência é simplesmente a transferência da sociedade para a natureza animada da teoria de Hobbes de guerra de todos contra todos e da teoria econômica burguesa da competição, junto com a teoria malthusiana de população. Uma vez tendo alcançado este feito — (como indicado sob (1), eu questiono a justificação apressada da teoria de Darwin, especialmente no que diz respeito a teoria malthusiana) — as mesmas teorias são então transferidas de volta da natureza orgânica para a história e a validade delas como leis eternas da sociedade humana é tida como provada. A infantilidade desse procedimento é óbvio, e não vale a pena gastar palavras com isso.

Para um panorama das teorias da evolução não malthusianas, veja Todes (1989), Sapp (1997).

30 Já em 1842, em seu “First Pencil Sketch of the Species Theory,” Darwin escreve a seguinte série de notas para si mesmo:

Mas considerando o enorme potencial de crescimento geométrico em cada organismo e como cada país, em casos comuns, deve ser abastecido ao máximo, a reflexão mostrará que este é o caso. Malthus sobre o homem — em animais nenhuma restrição moral [...] a pressão está sempre pronta ... mil cunhas são forçadas dentro da economia da natureza. Isto requer muita reflexão; estudar Malthus e calcular taxas de crescimento e lembrar a resistência — apenas intermitente. [...] No curso de mil gerações diferenças infinitesimais devem invariavelmente contar. (Citado em Young 1985, 41). Veja Darwin 1842 (http://darwin-online.org.uk/content/frameset?viewtype=image&itemID=CUL-DAR6.1-13&pageseq=1) para um facsímile do original.

31 Como nota Henri Bergson esse tipo de prestidigitação temporal aflige o realismo científico de maneira geral já que ele entende que “a matéria evolui em tal modo que podemos passar de um momento ao outro através de uma dedução matemática” (Bergson, 2007, 76). Em Evolução Criadora, Bergson conecta diretamente esta estratégia com a invenção newtoniana das fluxões, argumentando que ao incorporar o cálculo diferencial para descrever o movimento do tempo: “Você está, desse modo, falando na verdade apenas do presente — o presente, é verdade, considerado junto com sua tendência.” (1975, 26) Além disso, Bergson defende que tais hábitos de entendimento relacionam-se de maneira tendenciosa com a evolução ao obstruir a verdadeira passagem do tempo: “A evolução implica uma persistência real do passado no presente, uma duração que é, como foi, um hífen, uma conexão. Em outras palavras, conhecer um ser vivo ou um sistema natural é chegar ao próprio intervalo de duração, enquanto que o conhecimento de um sistema artificial ou matemático aplica-se apenas às extremidades. (Bergson, 1975, 27).


Obras citadas

Agamben, Giorgio. 2007. Profanations. Trans. Jeff Fort. New York: Zone.

Ariew, André. 2007. “Under the Influence of Malthus’ Law of Population Growth: Darwin Eschews the Statistical Techniques of Adolphe Quetelet.” Studies of History and Philosophy of Biology and Biomedical Science 38 (1): 1–19.

Aristotle. 1998. The Metaphysics. Trans. Hugh Lawson–Tancred. London: Penguin.

Arthur, Richard. 1995. “Newton’s Fluxions and Equably Flowing Time.” Studies in History and Philosophy of Science 26 (2): 323–51.

Balme, D. M. 1962. “Genos and Eidos in Aristotle’s Biology.” The Classical Quarterly N.S. 12 (1): 81–98.

Bataille, Georges. 1992. Theory of Religion. New York: Zone Books.

Bendyshe, Thomas. 1865. “The Anthropology of Linnaeus.” Memoirs Read before the Anthropological Society of London 1863–1864. 1: 421–58.

Bergson, Henri. 1975. Creative Evolution. Trans. Arthur Mitchell. Westport, CT: Greenwood Press.

Bergson, Henri. 2007. Matter and Memory. Trans. N. M. Paul and W.S. Palmer. New York: Cosmo Classics.

Bowler, Peter. 1976. “Malthus, Darwin and the Struggle for Survival.” Journal of the History of Ideas 37 (4): 631–50.

———.1977. “Seventeenth-Century Political Arithmetic: Civil Strife and Vital Statistics.” Isis  68 (1): 67–84.

Buck, Peter. 1982. “People Who Counted: Political Arithmetic in the Eighteenth Century.” Isis 73 (1): 28–45.

Buffon, Georges Leclerc, Comte de. 1749. Histoire Naturelle Générale et Particuliére, avec Description du Cabinet du Roy. Tome 1ere and 2eme. Paris: Imprimerie Royale.

———. 1753. Histoire Naturelle Générale et Particuliére, avec Description du Cabinet du Roy. Tome 4eme. Paris: Imprimerie Royale.

Chambers, Ephraim. 1741. Cyclopaedia, or, An universal dictionary of arts and sciences containing an explication of the terms, and an account of the things signified thereby, in the several arts both liberal and mechanical, and the several sciences, human and divine. London: Printed for D. Midwinter.

Cohen, Ed. 2009. A Body Worth Defending: Immunity, Biopolitics, and the Apotheosis of the Modern Body. Princeton: Duke.

Cohen, I. B. 1994. “Newton and the Social Sciences.” In Natural Images in Economic Thought, ed. Philip Mirowski, 55–90. Cambridge: Cambridge University Press

Cremaschi, Sergio and Marcelo Dascal. 1996. “Malthus and Ricardo on Economic Methodology.” History of Political Economy 8 (3): 475–511. 

Curran, Andrew. 2009. “Rethinking Race History: The Role of the Albino in French Enlightenment Life Sciences.” History and Theory 48 (3): 151–79.

Darwin, Charles. 1842. “First 'pencil' sketch of species theory, 1842.” Facsimile. Accessed 20 August 2010. http://darwin-online.org.uk/content/frameset?viewtype=image&itemID=CUL-DAR6.1-13&pageseq=1.

Darwin, Charles. 1859. On the Origin of Species Means of Natural Selection. London: John Murray. Accessed 1 May 2011. http://darwin-online.org.uk/content/frameset?viewtype=side&itemID=F373&pageseq=1

Darwin, Charles, and Alfred R. Wallace. 1858. “On the tendency of species to form varieties; and on the perpetuation of varieties and species by natural means of selection.” Journal of the Proceedings of the Linnean Society of London, Zoology 3 (20 August): 46–50.

De Castro, Eduardo Viveiros. 1998. “Cosmological Deixis and Amerindian Perspectivism.” Journal of the Royal Anthropological Institute 4 (3): 469–88.

Deleuze, Gilles. 1994. Difference and Repetition. Trans. Paul Patton. New York: Columbia University Press.

Dillon, Michael, and Luis Lobo–Guerrero. 2009. “The Biopolitical Imaginary of Species-being.” Theory, Culture, and Society 26 (1): 1–23.

Dupré, John. 2002. Humans and Other Animals. Oxford: Oxford University Press.

Elias, Norbert. 1982. The history of manners. New York: Pantheon Books.

Engles, Friedrich. 1875. “Engels to Lavrov.” London, 12 November. Accessed 1 May 2011 http://www.marxists.org/archive/marx/works/1875/letters/75_11_12.htm#n1.

Foucault, Michel. 1970. The Order of Things: An Archaeology of the Human Sciences. Translated. New York: Vintage. 

———. 1978. The History of Sexuality, vol. 1. Trans. Robert Hurley. New York: Vintage.

———. 2007. Security, Territory, Population. Trans. Graham Burchell. New York: Palgrave.

Farber, Paul. 1972. “Buffon and the Concept of Species.” The Journal of the History of Biology 5 (2): 259–84.

Grene, Marjorie. 1974. “Is Genus to Species as Matter to Form? Aristotle and Taxonomy.” Synthese 28 (1): 51–69.

———. 1978. “Individuals and their Kinds: Aristotelian Foundations of Biology.” In Organism, Medicine, and Metaphysics, ed. Stuart Spicker, 121–36. Boston: D. Reidel.

Guicciardini, Niccolò. 2006. “Method versus Calculus in Newton’s Criticisms of Descartes.” Proceedings of the International Congress of Mathematicians. Madrid: European Mathematical Society.

Hacking, Ian. 1990. Taming of Chance. Cambridge: Cambridge University Press.

Harris, John. 1704. Lexicon technicum, or, An universal English dictionary of arts and sciences explaining not only the terms of art, but the arts themselves. London: Printed for Dan Brown, Tim Goodwin, John Wahler, The Newburugh, John Newbolson.

Herbert, Sandra. 1971. "Darwin, Malthus and Selection." Journal of the History of Biology 4 (2): 209–217.

Hudson, Nicholas. 1996. “From ‘Nation’ to ‘Race’: The Origin of Racial Classification in Eighteenth–Century Thought.” Eighteenth-Century Studies 29 (3): 247–64.

Jonas, Hans. 1966. “Is God a Mathematician?” The Phenomenon of Life: Towards a Philosophical Biology. New York: Harper and Row.

Kantorowicz, Ernst. 1957. The King’s Two Bodies: A Study in Mediaeval Political Theology. Princeton, NJ: Princeton University Press.

Kitchner, Phillip. 1973. “Fluxions, Limits and Infinite Littleness: A Study of Newton’s

Presentation of the Calculus.” Isis 64 (1): 33–49.

Koener, Lisbet. 1999. Linnaeus: Nature and Nation. Cambridge: Harvard University Press.

LaPorte, Joseph. 2007. “In Defense of Species.” Studies in History and Philosophy of Science Part C: Studies in History and Philosophy of Biological and Biomedical Sciences 38 (1): 255–69.

Latour, Bruno. 2004. The Politics of Nature: How to Bring the Sciences into Democracy. Trans. Catherine Porter. Cambridge, MA: Harvard University Press.

Latour, Bruno, and Vincent Antoine Lépinay. 2010. The Science of Passionate Interests: An Introduction to Gabriel Tarde’s Economic Anthropology. Chicago: Prickly Paradigm.

Levinas, Emmanuel. 1978. Otherwise than Being or Beyond Essence. Trans. Alphonso Lingis. Dordrecht and Boston, MA: Kluwer Academic Publishers.

Linnaeus, Carolus [Linné, Carl von], and Benjamin Stillingfleet. 1759. “The Oeconomy of Nature.” In Miscellaneous tracts relating to natural history, husbandry, and physick. London: Printed, and sold by R. and J. Dodsley, S. Baker, and M. Cooper.

Linnaeus, Carolus [Linné, Carl von], and William Turton. 1806. A general system of nature through the three grand kingdoms of animals, vegetables, and minerals : systematically divided into their several classes, orders, genera, species and varieties with their habitations, manners, economy, structure and peculiarities. London: Lackington, Allen.

Locke, John. (1694). An essay concerning humane understanding. In four books. London: Printed for A. and J. Churchill and S. Manship.

Locke, John, and David Wootton. 2003. Political writings. Indianapolis: Hackett Pub.

Lomonaco, Jeffrey. 2002. “Adam Smith's "Letter to the Authors of the Edinburgh Review." Journal of the History of Ideas. 63 (4): 659–76.

Lovejoy, Arthur. 1959. “Buffon and the Concept of Species.” In Forerunners of Darwin, eds. Bentley Glass, Oswei Temkin, and W. L. Strauss, 84–113. Baltimore: Johns Hopkins University Press.

Macpherson, C. B. 1962. The Political Theory of Possessive Individualism: From Hobbes to Locke. Oxford: Clarendon Press.

Library of Economics and Liberty. Accessed 16 August 2010. <http://www.econlib.org/library/Malthus/malPlong.html>.

Malthus, Thomas Robert. 1814. Observations on the Effects of the Corn Laws. Hertfordshire, London. Printed for J. Johnson and Co., St. Paul's Church–Yard. Accessed 15 August 2010. http://socserv2.socsci.mcmaster.ca/~econ/ugcm/3ll3/malthus/cornlaws

Marchant, James, Robert Vernam. 1892. Cassell's Latin Dictionary: (Latin-English and English Latin). London: Cassell.

Marx, Karl, and Frederick Engles. 1970. The German Ideology. Ed. C.J. Arthur. New York: International Publishers.

Marx, Karl. 1862. “Marx to Engles in Manchester.” London, 18 June. Accessed 1 May 2011. http://www.marxists.org/archive/marx/works/1862/letters/62_06_18.html

Mayr, Ernst. 1989. Towards a New Philosophy of Biology: Observations of an Evolutionist. Cambridge: Harvard University Press.

McGuire, J. E. 2007. “A Dialogue with Descartes: Newton’s Ontology of True and Immutable Natures.” Journal of the History of Philosophy 45 (1): 103–125.

McNally, David. 2000. “Political Economy to the Fore: Burke, Malthus and Whig Response to Popular Radicalism in the Age of the French Revolution.” History of Political Thought 21 (3): 427–47.

Morris, John. 1974. “Descartes on Tendencies.” The Philosophical Forum 5 (4): 572–582.

Mouracade, John, ed.. 2008. Aristotle on Life. Kelowna, B.C.: Academic Printing and Publishing.

Muller–Wille, Staffan. 2003. “Nature as Marketplace: The Political Economy of Linnaean Botany.” History of Political Economy 35, annual supplement: 154–72.

Newton, Isaac. 1736. The Method of Fluxions and Infinite Series; with its Application to the Geometry of Curved Lines. London: John Norse.

Pangia, Davide. 2010. “‘Partage du Sensible’: the distribution of the sensible.” In Jacques Rancière: Key Concepts. Ed. Jean–Phillippe Deranty, 97–105. London: Acumen.

Porter, David T. 1986. The Rise of Statistical Thinking: 1820–1900. Princeton: Princeton University Press.

Ramati, Ayval. 2001. “The Hidden Truth of Creation: Newton’s Method of Fluxions.” British Journal of the History of Science 34 (3): 417–38.

Rancière, Jacques. 1999. Disagreement: Politics and Philosophy. Trans. Julie Rose. Minneapolis: University of Minnesota Press.

———. 2000a. Le Partage du Sensible. Paris: La Fabrique.

———. 2000b. “Politiques ou Biopolitiques.” Multitudes 1 (March 2000): 88–93.

———. 2004. The Politics of Aesthetics: The Distribution of the Sensible. Trans. Gabriel Rockhill. London: Continuum.

Robert, James, Vernam Marchant, and Joseph Fletched, eds. 1982. Castel’s Latin Dictionary. London: Castel’s.

Salhins, Marshall. 2008. The Western Illusion of Human Nature. Chicago: Prickly Paradigm.

Sapp, Jan. 1997. Evolution by Association: A History of Symbiosis. New York: Oxford.

Schabas, Margaret. 2003. “Adam Smith’s Debts to Nature.” History of Political Economy 35, annual supplement: 262–281.

Schiebinger, Londa. 1993. “Why Mammals are Called Mammals: Gender Politics in Eighteenth–Century Natural History.” American Historical Review. 98 (2): 382–411.

Sloan, Phillip. 1973. “The Idea of Racial Degeneration in Buffon’s Histoire Naturelle.” Studies in Eighteenth–Century Culture 3: 293–321.

———. 1976. “The Buffon–Linnaeus Controversy.” Isis 67 (3): 356–75.

———. 1985. “From Logical Universals to Historical Individuals: Buffon’s Idea of Biological Species.” In Histoire du concept d’espace dans les sciences de la vie, ed. Scott Atran et al., 101–140. Paris: Fondation Singer–Polignac.

———. 1995. “The Gaze of Natural History.” In Inventing Human Science: Eighteenth–Century Domains, eds. Christopher Fox, Roy Porter, and Robert Wokler, 112–51. Berkeley: University of California Press.

Smith, Adam. 1811. “Letter to the Authors of the Edinburgh Review.” In The Works of Adam Smith Vol. 5, 567–84. London: T. Cadell and W. Davies.

Smith, Adam. 1937. An Inquiry Concerning the Nature and Causes of the Wealth of Nations. Ed. Edwin Cannan. New York: The Modern Library, 1937.

Smith, Adam. 2002 [1759]. The Theory of Moral Sentiments. Ed. Knud Haakonssen. Cambridge: Cambridge University Press.

“Species.” 1997. In Stanford University, and Center for the Study of Language and Information (U.S.), Stanford encyclopedia of philosophy. [Stanford, Calif.]: Stanford University. http://plato.stanford.edu/entries/species/

Stamos, David. 2003. The Species Problem: Biological Species, Ontology, and the Metaphysics of Biology. Lanham : Lexington Books.

 ———. 2007. Darwin and the Nature of Species. Albany: SUNY Press.

Stengers, Isabelle. 2005. “The Cosmopolitical Proposal.” In Making Things Public, ed. Bruno Latour and Peter Weibel, 994–1003. Cambridge: MIT Press.

Stigler, S. 1986. The History of Statistics: The Measurement of Uncertainty before 1900. Cambridge: Harvard University Press.

Todes, Daniel Philip. 1989. Darwin without Malthus: the struggle for existence in Russian evolutionary thought. New York: Oxford University Press.

Vorzimmer, Peter. 1969. "Darwin, Malthus and the theory of natural selection." Journal of the History of Ideas 30 (4): 527–42.

Waterman, A.M.C. 1998. “Malthus, Mathematics, and the Mythology of Coherence.” History of Political Economy 30 (4): 571–99.

Waltzer, Arthur. 1987. “Logic and Rhetoric in Malthus’s Essay on the Principle of Population, 1798.” The Quarterly Journal of Speech 73 (1): 1–17.

Whately, Richard. 1847 [Delivered 1831]. Introductory Lectures on Political Economy. London: John W. Parker.

Williams, Raymond. 2005. Culture and materialism: selected essays. London: Verso.

Winch, Donald. 1996. “Malthus versus Condorcet Revisited.” The European Journal of the History of Economic Thought 3 (1): 44–60.

Young, Robert. 1985. Darwin's Metaphor: Nature's Place in Victorian. Cambridge: Cambridge University Press.

 Zirkle, Conway. 1959. “Species Before Darwin.” Proceedings of the American Philosophical Society 103:5 (15 October): 636–44.