1. Comunidade, imunidade, biopolítica. Que relação existe entre estes três termos, em torno dos quais tem-se articulado o meu trabalho nos últimos anos? É possível conectá-los numa relação que vá além de uma simples sucessão de conceitos ou de léxicos diferentes? Acho que não somente é possível, mas também necessário. Mais propriamente, que é só na relação com os outros dois que cada termo encontra o seu sentido mais pleno. Mas comecemos a partir de um dado histórico, recordando brevemente a passagem mediante a qual as duas semânticas, primeiro da comunidade e depois da biopolítica, sucederam-se no debate filosófico contemporâneo. Foi ao final dos anos oitenta que, na França e na Itália, desenvolveu-se um discurso sobre a categoria de comunidade que desconstruía radicalmente as modalidades com que o termo-conceito tinha sido utilizado na filosofia do século vinte, primeiro pela sociologia organicista alemã da Gemeinschaft, depois pelas várias éticas da comunicação e finalmente pelo neocomunitarismo americano. O que, apesar das conspícuas diferenças, unia estas três concepções de comunidade era uma tendência, que poderíamos chamar de metafísica, a pensarnela num sentido substancialista e subjetivista. A comunidade era essa substância que conectava determinados sujeitos entre si, na partilha de uma identidade comum. Deste modo, a comunidade aparecia ligada conceitualmente à figura do “próprio”: quer se tratasse de apropriar-se do que é comum ou de comunicar o que é próprio, a comunidade era definida por uma pertença recíproca. Seus membros revelavam ter em comum o seu próprio, ser proprietários do seu comum.
Foi contra esse curto-circuito intelectual – pelo qual o comum transformava-se no que, a nível lógico, é o seu contrário – quer dizer, no próprio, que surgiu uma série de textos em rápida sucessão, como La communauté désœuvrée de Jean-Luc Nancy, La communauté inavouable de Maurice Blanchot, La comunità che viene de Giorgio Agamben e o meu Communitas. Origine e destino della comunità. O que os acomunava numa mesma tonalidade era uma espécie de alteração da semântica precedente, no sentido, também literal, de que a comunidade, em vez de referir-se a uma propriedade ou a uma pertença de seus membros, remetia a uma alteridade constitutiva que a diferenciava de si mesma e a excluía de qualquer conotação identitária. Mais que por uma substância, ou uma res, os sujeitos da comunidade, tal como era definida nesses trabalhos, revelavam-se unidos por uma falha que os atravessava e os contaminava reciprocamente. Em particular no livro de Nancy, que tinha aberto essa perspectiva ao longo de um percurso fortemente marcado pelo Mitsein de Heidegger e o être avec de Bataille, a comunidade não era concebida como algo que gera um relacionamento entre determinados sujeitos, mas como o próprio ser da relação. Dizer, como tem afirmado Nancy, que a comunidade não é um “ser” comum, mas o ser “em comum” de uma existência coincidente com a exposição à alteridade significa acabar com todas as declinações substancialistas, de caráter particular e universal, subjetivo e objetivo. Mesmo assim, apesar da fecundidade teórica desta passagem, um problema continuava em aberto. Subtraindo a comunidade do horizonte da subjetividade, Nancy tornava problemática a sua articulação com a política – ainda que seja somente pela evidente dificuldade de imaginar uma política totalmente externa a uma dimensão subjetiva –, detendo-a assim numa dimensão necessariamente impolítica. Desta maneira, o discurso sobre a comunidade continuava a oscilar entre uma declinação política, mas com resultado regressivo – a das pequenas pátrias do solo e do sangue – e a uma modalidade teoricamente fecunda, mas politicamente intraduzível. A minha impressão é que, no fundo desta dificuldade em declinar politicamente a nova noção de comunidade, estava a tendência, por parte dos seus teóricos e de Nancy em particular, a olhá-la do ponto de vista do cum, mais que do munus. É como se o absoluto privilégio atribuído à figura da relação, do relacionamento, acabasse por cancelar o seu conteúdo mais relevante – o próprio objeto do intercâmbio recíproco – e portanto, junto com ele, também o seu significado potencialmente político.
A contribuição que pessoalmente tenho tentado trazer para a discussão é um movimento genealógico rumo à origem do conceito. Quero dizer que a ideia de comunidade traz em si a chave para fugir à sua condição impolítica e recuperar uma significância política, mas sob a condição de atravessar a sua história às avessas, até o seu étimo latim communitas e, ainda antes, ao termo do qual este deriva, ou seja, munus.A pPartir deste pressuposto, dei iníicio a um percurso interpretativo que, apesar de compartilhar o mesmo requisito, afasta-se sensivelmente daquele utilizado pelos desconstrucionistas franceses, ao menos quanto a um ponto bem preciso. Ainda assumindo a pars destruens do seu discurso contra os comunitarismos identitários, desviei a atenção do cerne do conceito de comunidade, do âmbito do cum, no qual concentrava-se a análise de Nancy, para o de munus, que ele tinha , de certo modo, deixado à sombra. O seu significado complexo e bivalente de “lei” e de “dom” e, mais precisamente, de lei do dom em relação aos outros, permitia-me manter e até acentuar a semântica expropriativa já elaborada pelos desconstrucionistas: pertencer a fundo à communitas originária significa renunciar à própria substância mais prezada, quer dizer, à própria identidade individual, num processo de progressiva abertura ao outro de si mesmo. Ao mesmo tempo, permitia que eu desse um passo adiante, ou melhor, lateral, que reabria um possível caminho rumo à dimensão política.
No centro desta passagem está o paradigma da imunidade, ao qual é difícil aceder pelo lado do cum, porque deriva o seu significado, negativo ou privativo, justamente do termo munus. Se a communitas é o que liga os seus membros num compromisso donativo mútuo, a immunitas, ao contrário, é o que os livra desse encargo, que os exonera desse ônus. Enquanto a comunidade refere-se a algo geral e aberto, a imunidade, ou imunização, refere-se à particularidade privilegiada de uma situação definida pela sua exclusão a uma condição comum. Isso é evidente na perspectiva jurídica, segundo a qual é dotado de imunidade – parlamentária ou diplomática – quem não é sujeito a uma jurisdição que concerne a todos os outros cidadãos, por derrogação da lei comum. Mas é igualmente reconhecível, na acepção médica e biológica do termo, segundo a qual a imunização, natural ou induzida, implica a capacidade por parte do organismo de resistir, graças aos seus anticorpos, a uma infecção causada por um vírus externo. Sobrepondo as duas semânticas, jurídica e médica, podemos certamente concluir que, se a comunidade determina a ruptura das barreiras de proteção da identidade individual, a imunidade constitui o modo de reconstituí-las de forma defensiva e ofensiva contra qualquer elemento externo capaz de ameaçá-la. Isso vale não somente para os indivíduos particulares, mas também para as próprias comunidades, entendidas neste caso na sua dimensão particular, imunizadas contra qualquer elemento estranho que pareça ameaçá-las a partir do seu exterior. Daí o duplo vínculo, implícito nas dinâmicas imunitárias – já típicas da modernidade e hoje cada vez mais estendidas a todos os âmbitos da experiência individual e coletiva, real e imaginária. A imunidade, ainda que necessária à conservação da nossa vida, uma vez levada além de um certo limite, a constringe numa espécie de jaula na qual acaba por perder-se, não só a nossa liberdade, mas também o próprio sentido da nossa existência, isto é, essa abertura da existência para fora de si mesma, à qual se tem dado o nome de communitas. Eis aqui a contradição que tentei pôr em relevo nos meus trabalhos: o que salvaguarda o corpo, individual, social, político, é o que ao mesmo tempo impede o seu desenvolvimento. E que, levado além de um certo limite, ameaça destruí-lo. Nas palavras de Benjamin, poderíamos dizer que a imunização em doses elevadas é o sacrifício do vivente, quer dizer, de qualquer vida qualificada, em nome da mera sobrevivência. A redução da vida à sua desnuda matéria biológica. Vê-se bem como, graças a esta chave hermenêutica, e sem recair numa metafísica substancialista, a categoria de comunidade pode readquirir uma nova conotação política. No exato momento em que o dispositivo imunitário transforma-se na síndrome, ao mesmo tempo defensiva e ofensiva, do nosso tempo, a comunidade apresenta-se como o lugar destinado – de modo real e simbólico – à resistência ao excesso de imunização que nos captura incessantemente. Se a imunidade tende a encerrar a nossa existência em círculos, ou recintos, incomunicados entre si, a comunidade, mais que um círculo maior que os compreende, é a passagem que, cruzando as suas demarcações fronteiriças, remexe a experiência humana, liberando-a da sua obsessão pela segurança.
2. Mas – e aqui insere-se a segunda questão aqui enunciada – a política da qual neste caso se fala só pode ser uma forma de biopolítica. Uma vez que o fenômeno da imunidade inscreve-se exatamente no ponto de interseção entre o direito e a biologia, entre o procedimento médico e a proteção jurídica, é evidente que também a política que isso determina, na forma de ação ou reação, vai revelar-se numa relação direta com a vida biológica. Mas a relação entre a biopolítica, por um lado, e a dialética opositiva comunidade-imunidade, por outro, é ainda mais intrínseca – no que se refere ao significado, de outra forma fugidio, desse conjunto de dinâmicas de diferentes naturezas, reconduzíveis ao paradigma biopolítico. É inútil reconstruir aqui a história recente deste paradigma – originado dos cursos de Foucault nos anos setenta e prosseguido sobretudo por algumas interpretações italianas, inicialmente de Giorgio Agamben e Toni Negri, que desenvolveram de uma maneira original as extraordinárias intuições de Foucault.
A referência às diferentes modalidades que a categoria de biopolítica assumiu segundo estes autores nos remete, todavia, a uma dificuldade, ou melhor, a uma antinomia fundamental – de certa forma reconhecível, de forma latente, já nos textos de Foucault, – que consiste, essencialmente, numa falha ou insuficiente articulação entre os dois polos, do bios e da política, que compõem o termo biopolítica. É como se, em vez de estar ligados num único bloco semântico, tivessem sido pensados separadamente e depois, só num segundo momento, relacionados entre si. Quero dizer que a radical divergência entre um tipo de interpretação negativa, senão apocalíptica, e outra, pelo contrário, marcadamente otimista e até eufórica – da biopolíticabrota de uma fratura semântica, já presente nos textos de Foucault, entre duas camadas de significado nunca perfeitamente integrados entre si no interior do conceito e, de fato, destinados a quebrá-lo em duas partes reciprocamente incompatíveis, ou compatíveis somente através da sujeição violenta de uma ao domínio da outra. Deste modo, ou a vida parece presa, como se aprisionada, por um poder destinado a reduzí-la a mera matéria biológica, ou é a política que corre o risco de ser dissolvida no ritmo de uma vida capaz de reproduzir-se sem interrupções, além das contradições históricas que a assolam. No primeiro caso, o regime biopolítico tende a não afastar-se do regime soberano, do qual parece constituir uma marca interna; no segundo caso, emancipa-se dele a ponto de perder qualquer contato com a própria genealogia profunda. Como já dizia, nem mesmo o próprio Foucault jamais chegou a uma firme opção entre essas duas possibilidades extremas, oscilando entre uma e outra sem chegar jamais a uma resolução definitiva. Tanto a relação entre regime soberano e regime biopolítico quanto aquela entre modernidade e totalitarismo ficam, no seu aparato categórico, ofuscadas por essa indecisão fundamental sobre o seu próprio significado e ainda mais sobre os resultados do que ele mesmo definiu como “biopolítica”, ou, sem atribuir particular significado a tal diferença léxica, “biopoder”. Como já tive ocasião de observar, a minha impressão é que falta algo no seu formidável dispositivo conceitual – um anel intermediário ou um segmento de junção – capaz de conectar essas diferentes configurações do conceito e, ainda antes, as duas polaridades fundamentais da vida e da política numa forma mais orgânica e complexa que aquela, ainda hesitante, que ele utilizou nos seus trabalhos pioneiros.
É justamente este nexo constitutivo que tentei isolar no paradigma da imunização. Na sua dupla declinação biológica e jurídica, este constitui exatamente o ponto de tangência entre a esfera da vida e a da política. Daí a possibilidade de se preencher a distância de princípio entre as duas interpretações extremas da biopolítica – entre a sua versão mortífera e a sua versão eufórica. Mais que dois modos opostos e irreconciliáveis de entender a categoria, constituem as suas duas possibilidades internas, num horizonte unificado precisamente pelo caráter bivalente, ao mesmo tempo positivo e negativo, protetor e destrutivo, do dispositivo imunitário. Uma vez estabelecido o duplo perfil do processo de imunização – ao mesmo tempo proteção e negação da vida – o paradigma da biopolítica, ou de biopoder, também encontrá nele a sua definição mais côngrua. O modo negativo que em alguns momentos o tem conotado não é o resultado da sujeição violenta que o poder exerce do exterior sobre a vida, mas a maneira contraditória pela qual a própria vida tenta defender-se dos perigos que a ameaçam, contradizendo outras necessidades igualmente ressaltadas. A imunidade, necessária para a conservação da vida individual e coletiva – nenhum de nós permaneceria vivo sem o sistema imunitário interno do nosso corpo – acaba por contrapor-se ao seu desenvolvimento, se entendida de forma exclusiva e excludente em relação a qualquer alteridade ambiental e humana.
Em outras palavras, o que está em jogo é a diferença – a qual tem disputado Derrida – entre imunização e autoimunização. Todos sabemos o que são as doenças autoimunes. Trata- se dessas formas patológicas que ocorrem quando o sistema imunitário dos nossos corpos torna-se tão forte que chega a voltar-se contra si mesmo, causando a morte do próprio corpo. Naturalmente, isso não acontece sempre. Normalmente, o sistema imunitário limita-se a uma função conservadora, sem voltar-se contra o corpo que o hospeda. Mas, quando isso acontece, não é por uma causa externa, mas por efeito do próprio mecanismo imunitário, intensificado a ponto de tornar-se insuportável. Pois bem, uma dinâmica parecida é reconhecível também no corpo político, quando as barreiras de proteção contra o mundo exterior começam a tornar-se um risco maior que aquele que tentavam evitar. Como se sabe, um dos maiores riscos para as nossas sociedades hoje em dia consiste justamente num excessivo pedido de proteção, que, em alguns casos, tende a produzir uma impressão de perigo, real ou imaginário, com o único fim de ativar meios de defesa preventiva cada vez mais potentes contra ele. Esta articulação, por assim dizer lógica e histórica, entre os paradigmas de biopoder e de imunização nos permite, por um lado, esclarecer o próprio significado do conceito de biopolítica e, por outro, estabelecer uma distinção interna entre a sua modalidade negativa e uma outra, ao contrário, potencialmente afirmativa. O fato de a primeira ter claramente prevalecido sobre a segunda ao longo do último século não impede que esta possa ressurgir.
Mas vamos por ordem. Muitas vezes nos temos perguntado qual é, e se existe, uma real especificidade da categoria de biopolítica, dado que desde sempre a política tem a ver, de alguma maneira, com a vida, no seu sentido estritamente biológico. Não era uma forma de biopolítica a política agrária da Roma antiga ou o uso dos corpos dos escravos nos antigos impérios? E então, o que é que os distingue, na essência, do que se tem sido definido com essa expressão? E mais, a biopolítica nasceu com a modernidade, como Foucault tendia a crer, ou tem uma genealogia mais longa e profunda? A essas perguntas se poderia responder que, considerada a partir do ponto de vista da sua matéria vivente, qualquer política tem sido e será uma forma de biopolítica. Mas é a caracterização imunitária que determina, primeiro a intensificação moderna e, mais tarde, na fase totalitária, a deriva tanatopolítica. Como bem soube ver Nietzche, o que chamamos “modernidade” não é senão a metalinguagem que tem permitido responder em termos imunitários a uma série de pedidos de proteção preventiva brotadas do fundo mesmo da vida no momento em que falhavam as promessas de salvação transcendente. Se o paradigma da imunização nos ajuda a apreender o nexo estrutural entre modernidade e biopolítica, o de autoimunização nos permite estabelecer a relação, e o elemento de descontinuidade também, entre a biopolítica moderna e a tanatopolítica nazista. No caso desta última, não só a defesa racial do povo germânico tinha virado o objetivo principal da política alemã – como se a sua sobrevivência dependesse da morte dos seus inimigos externos e internos – mas, em um determinado momento, quando a derrota pareceu inevitável, ordenou-se a sua autodestruição. Neste caso, a síndrome imunitária tinha adquirido uma conotação plenamente autoimunitária e a biopolítica tinha chegado a coincidir perfeitamente com a tanatopolítica.
3. Como já ficou claro, o fim do nazismo – e depois, a uma distância de meio século, do comunismo soviético – não marcou o fim da biopolítica, hoje instalada estavelmente na sociedade contemporânea de uma forma que pode parecer substituir as velhas ideologias. Não é difícil reconhecer a sua presença crescente em todos os âmbitos da política interna e internacional, ao longo de uma linha que cada vez menos distingue o público do privado. Desde a esfera da saúde até a das biotecnologias, desde a questão étnica até a ambiental, a única fonte de legitimação política parece ser hoje a da conservação e da implementação da vida. É justamente neste contexto que volta a apresentar-se com renovada urgência a necessidade de uma biopolítica afirmativa. Trataria-se de algo assim como um horizonte de significado no interior do qual a vida já não seria um objeto, mas, de certo modo, um sujeito da política. E então como delinear os seus contornos? Onde identificar os seus sintomas? Com que objetivos? Trata-se de uma questão, ou melhor, de um conjunto de questões, nada fácil. Ter tido uma experiência dramática, e às vezes trágica, de uma biopolítica negativa, ou até de uma conclamada tanatopolítica, não basta, por si só, para identificar, por contraste, o seu contrário. Não é possível limitar-se a tornar positivas determinadas práticas que são, sob vários aspectos, mortíferas – ou, no sentido extremo de causar a morte , não contrastar a sua difusão nas zonas mais pobres do mundo. O que se exige é um salto de qualidade que organize de modo totalmente diferente o nexo entre os vínculos e as necessidades, entre a expansão do mercado financeiro e a proteção das faixas mais débeis do ponto de vista social, cultural, geracional. Neste trabalho abrangente, possibilitado somente por uma nova aliança entre políticas nacionais e internacionais, entre partidos e movimentos, entre sujeitos individuais e coletivos, um primeiro ponto de orientação, não só teórico, pode ser constituído justamente a partir da dialética entre comunidade e imunidade à qual me referia antes. Trata-se, de certo modo, ou melhor, de todos os modos, de inverter as relações de força entre “comum” e “imune”. De separar, através do comum, a proteção imunitária da destruição da vida. De pensar de uma maneira diferente a função dos sistemas imunitários, fazendo deles, mais que merasbarreiras excludentes, filtros de relação entre o interior e o exterior. Como? A partir de que pressupostos? Com que instrumentos? O problema se tem que enfrentar em dois níveis. O da desativação dos aparatos de imunização negativa e o da ativação de novos espaços do comum.
Comecemos pelo primeiro ponto. Já vimos como o crescimento anormal dos dispositivos de controle e de sujeição determina um correspondente decréscimo da liberdade individual e coletiva. Barreiras divisórias, bloqueios da circulação das ideias, das linguagens, das informações, mecanismos de vigilância ativados em todos os lugares sensíveis, constituem cada vez mais formas de desvitalização dos quais é necessário, por um lado, afastar-se e, por outro, opor resistência por todos os meios legítimos. Isto é particularmente difícil. Em primeiro lugar, porque os dispositivos contemporâneos – das medidas biométricas aferidas ao se atravessar uma fronteira às células fotoelétricas que enquadram cada movimento nosso, às interceptações que gravam as nossas palavras ou as nossas mensagens, também visam à nossa proteção e à proteção da sociedade. Mas é difícil por outro motivo mais fundamental. Ou seja, porque, como Foucault explicou perfeitamente, a subjetivação que dá sentido às nossas práticas passa sempre por alguma forma de sujeição – de forma que escapar à sujeição sempre tem um efeito de dessubjetivação. Por isso o êxodo dos dispositivos, e a sua desativação, comporta sempre um resultado dúplice – de liberação e de isolamento, de emancipação e de empobrecimento. Claro, viver fora da rede da Internet é possível, mas a um custo significativo de desorientação em relação ao mundo globalizado. O que deveríamos fazer, antes de promover a sua desativação, ou simplesmente antes de ser capturados, é uma discriminação preventiva entre dispositivos de proibição, dispositivos de controle e dispositivos de sujeição. Entre os sistemas capazes de facilitar a nossa experiência individual e coletiva e os aparatos que reduzem a sua potência vital. Ou também preservar zonas de silêncio no interior de uma comunicação já estendida a todos os momentos do nosso tempo de vida.
Mas isso não basta. Isso não pode constituir mais que o lado negativo – de exclusão individual – no interior de uma estratégi que se tem que jogar em positivo também. À desconexão dos vínculos do imune se tem que juntar a produção de espaços, de esferas, de dimensões comuns, cada vez mais ameaçadas pela invasão do seu contrário. Se paramos para refletir, o termo e o conceito de “comum” tem três contrários diferentes, mas convergentes no seu efeito contrastante – trata-se dos conceitos de “próprio”, de “privado” e de “imune”. Os três, diferentemente, opõem-se à semântica do comum nas formas, diversas mas convergentes, da apropriação, da privatização e da imunização. São três modos de dissolução da coesão social e, sobretudo, dessa ideia de “bem comum”, cada vez mais reduzida em intensidade e extensão, num mundo que, contudo, se quer global. Há algum tempo não só os filósofos, mas também os juristas, iniciaram um trabalho de reconstrução semântica do conceito de bem comum, exprimido entre os termos opostos e especulares de bem privado e de bem público. O próprio direito nasce em Roma como direito privado, destinado a sancionar de uma forma juridicamente codificada a apropriação originária das coisas, mas também de certos seres humanos reduzidos à condição de coisa por parte daqueles que à força declaram-se seus proprietários. A esta dinâmica de apropriação, no mundo moderno, tem-se unido a da publicização dos bens designados ao controle e ao usufruto dos organismos estatais. Assim o espaço comum, não apropriável nem por parte dos indivíduos particulares nem pelo Estado, tornou-se cada vez mais estreito até coincidir com a zona juridicamente indecidível da res nullius, da coisa de ninguém. Quando o mecanismo geral imunitário pôs-se em marcha, esta retirada do comum – sob a pressão convergente do próprio, do privado e do público. – tornou-se ainda mais integral. A imunidade não tem-se limitado a reforçar os confins do próprio, mas tem investido progressivamente na esfera do público também. Não é à toa que a soberania tem-se revelado o primeiro e fundamental dispositivo imunitário, ao lado das categorias, elas mesmas preventivamente imunizadas, de propriedade e de liberdade.
Quando, mais tarde, com o ocaso da primeira modernidade, estas categorias entraram numa relação direita com o horizonte da vida biológica, a erosão do bem comum – ou seja, de todos e de ninguém, de ninguém porque de todos – tornou-se ainda mais intensa. Os primeiros a ser privatizados foram os recursos ambientais – a água, a terra, o ar, as montanhas, os rios; logo os espaços urbanos, os edifícios públicos, as ruas, o patrimônio cultural; e finalmente os recursos da inteligência, os espaços da comunicação, os instrumentos da informação. Tudo isso à espera de que também os órgãos da vida biológica sejam postos legalmente à venda e comprados pelo melhor ofertante. Já a modernidade – com a invenção do Estado, ou seja, do maior dispositivo político – tem tido a tendência a excluir o bem comum, ou seja, o que pertence a todos, ou pelo menos a reduzí-lo cada vez mais, em favor de uma dialética entre o privado e o público destinada a ocupar progressivamente toda a cena social. Se lemos autores como Locke, ou Grozio, vemos como eles teorizam a necessidade de subdividir um mundo dado por Deus a todos, ou seja, a ninguém em particular, entre o que pertence aos proprietários particulares e o que pertence ao Estado. O conceito de patrimônio do Estado, como propriedade pública estatal, tem constituído por um longo período, ainda não terminado, não o oposto, mas a outra cara da propriedade privada. Com o que costumamos chamar de globalização, esta espécie de publicização do privado tem entrelaçado-se cada vez mais com o fenômeno oposto de privatização do público, de modo que parece esgotar, ou melhor, eliminar do horizonte de possibilidade algo assim como um bem comum. Isso adquire ainda mais relevância quando, com a reviravolta biopolítica em ação, qualquer bem, material ou intelectual, corpóreo ou tecnológico, vem a referir-se, direta ou indiretamente, à esfera da vida biológica, compreendendo nela também os recursos da inteligência e da linguagem, do simbólico e do imaginário, das necessidades e dos desejos.
É exatamente neste terreno que tem-se que enfrentar, e possivelmente ganhar, a batalha por uma biopolítica afirmativa. Ela deve começar com uma ruptura da tenaz que segura o público e o privado e que ameaça esmagar o comum ao tentar, pelo contrário, ampliar o seu espaço. O conflito que foi aberto contra o projeto de privatização da água, o relativo às fontes energéticas ou aquele destinado a questionar as patentes exclusivas das indústrias farmacêuticas, que impedem a difusão de medicamentos a baixo custo nas zonas mais pobres do planeta, vão todos nessa direção. Trata-se, naturalmente, de uma batalha difícil – também porque não devemos cometer o erro estratégico de abandonar o espaço público em favor do espaço comum, arriscando favorecer, no entanto, o processo de privatização. Mas não devemos confundir o bem comum com aquele pertencente à soberania do Estado ou das administrações regionais, de qualquer forma regulado pela preliminar subdivisão jurídica entre o público e o privado. O problema é que não existem no momento estatutos e códigos voltados para a proteção do comum em relação ao privado, ao próprio e ao imune. Em realidade, ainda antes de ter leis adequadas, no momento nem existe um léxico para falar de algo – o comum, que, de fato, primeiro o processo de modernização e depois o de globalização excluem. O comum não é nem o público – ao qual se contrapõe dialeticamente o privado – nem o global, ao qual corresponde, ao contrário, o local. É algo amplamente desconhecido e até refratário às nossas categorias conceituais, já há tempo organizadas pelo dispositivo imunitário geral. E, contudo, a aposta na biopolítica afirmativa, da vida e já não sobre a vida, é feita precisamente com base nesta possibilidade. Na capacidade de pensar, antes de agir, no interior deste horizonte. De pensar sobre, ou melhor, desde o interior, do comum. É nessa direção que, também através da categoria de “impessoal”, tenho tentado orientar a minha pesquisa nestes últimos anos.
Tradução de Perla Masi
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