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Visualidades instáveis

Jill Lane and Marcial Godoy-Anativia | New York University

A interseção entre performance e visualidade, tema dessa edição de e-misférica, representa um cruzamento entre amplos registros sensórios, regimes de conhecimento, e os métodos e teorias usados para estudá-los. Os nossos objetivos, no entanto, têm um alvo mais específico. Ao invés de tentar estabelecer definições distintas para essas duas áreas, ou debater sobre as suas diferenças, nós assumimos a interpretação contemporânea desses registros. Nós vivemos no que Nicholas Mirzoeff chama de mundos “intervisuais”, nos quais múltiplos repertórios de mídias visuais e não visuais estabelecem relações constantes, e constantemente mutáveis, de interdependência (Mirzoeff 2001: 124). Da mesma maneira, poderíamos dizer que vivemos em mundos de “inter-performance”, onde a nossa percepção da presença “ao vivo” é exercida em todos os pontos de um espectro de interfaces tecnológicas que, há muito tempo atrás, já ofuscaram quaisquer possibilidades de compreensões simplistas de performance como um evento que acontece “ao vivo”, face a face. Nestor García Canclini nos oferece a produtiva expressão “localização incerta” para descrever a mutabilidade das relações de lugar em relação ao ato artístico, e lidar com a complexidade dos processos de produção e circulação através das mídias do corpo, eletrônicas, e outras. O nosso objetivo é iluminar articulações contemporâneas entre a performance e o visual em suas “localizações incertas”, prestando atenção às oportunidades de crítica social que tanto a prática quanto a teoria da performance/visualidade possibilitam.

Como campos acadêmicos relativamente novos, tanto os estudos da performance quanto o estudo da cultura visual procuraram, desde o início, entender o potencial dos seus respectivos objetos de estudo — a performance e a visualidade — para produzir conhecimento fora dos regimes normativos de poder. Talvez Peggy Phelan tenha sido a primeira nos EUA a insistir na orientação anti-capitalista da performance art, no seu ainda hoje provocante livro Unmarked: the politics of performance (Não marcado: a política da performance, 1993). Phelan sugere que a performance, em um sentido “estritamente ontológico”, não pode ser reproduzida, porque duas performances nunca podem ser reduzidas a uma só. Phelan define performance como “representação sem reprodução”,  argumentando que a performance “obstrui a máquina eficiente de representação através da reprodução, necessária à ideologia do capital”. O espectador da performance art, Phelan argumenta, consome o seu objeto — a performance —de maneiras proibidas por outros modos de consumo:

sem uma cópia, a performance ao vivo mergulha na visibilidade — em um presente maniacamente carregado — e desaparece na memória, no campo da invisibilidade e do inconsciente, onde ela escapa à regulação e ao controle. A performance resiste aos cálculos equilibrados das finanças. Ela não preserva nada. Ela só gasta. (148)

 Para Phelan, a performance oferece uma economia alternativa da representação, sempre em fricção com a lógica reprodutiva do capital e, em iterações mais complexas, em fricção também com a reprodução social normativa da sexualidade, da raça e do gênero. Através de sua própria ontologia, a performance oferece uma economia alternativa de reprodução na qual a “reprodução do Outro como o Mesmo” nunca está garantida.

 Desde a sua origem, os estudos da cultura visual questionaram a sua metodologia interdisciplinar, perguntando se ela não auxiliava, a partir “de sua própria modesta perspectiva acadêmica”, a produzir sujeitos “para a próxima fase do capital globalizado”. O infame “questionário sobre estudos visuais” de 1966, produzido pela revista October, refletia essa acusação, e enquanto as reações, nas páginas de October e em outros lugares, foram sólidas, a resposta da crítica chilena Nelly Richard, insiste no potencial crítico que a arte tem de se opor à lógica visual do mercado:

 Enquanto a suave sedução do mercado quer acelerar tudo e colocar todas as imagens à vista, para facilitar um consumo superficial de acordo com o imediatismo do que está disponível e à mostra, a arte confronta a obviedade do visível, sem segredos ou enigmas de representação, com reticência. O potencial político da expressão artística está justamente no seu impulso de dirigir o olhar para as margens da perturbação, da discórdia e do irreconciliável, margens que cumprem a função prejudicial de andaimes da razão crítica, para demonstrar que nenhuma forma coincide pacificamente consigo mesma. (2006: 108)

 Brandindo a sua útil maçã da discórdia, Richard nos lembra que o valor político da arte não está naquilo que ela representa, mas sim em como ela nos ensina a ver: certos tipos de artes visuais — não diferente da performance art — nos compelem a uma certa tração no próprio ato de ver, uma tração contrária à reprodução fácil e, igualmente importante, à presunção da acessibilidade do formato visual. Tanto para Phelan quanto para Richard, portanto, o valor político da performance e das artes visuais está na sua capacidade de teimosamente desestabilizar qualquer naturalização da relação entre representação e reprodução.

Os trabalhos acadêmicos e artísticos nessa edição de e-misférica exploram justamente essa capacidade de “desestabilizar” a lógica reprodutiva dos regimes normativos de conhecimento. O primeiro artigo, da socióloga e ativista andina Silvia Rivera Cusicanqui, nos traz de volta a uma obra prima do século XVI, El primer nueva corónica y buen gobierno, de Guaman Poma de Ayala, uma carta de 1.100 páginas escrita em Espanhol e Quéchua, acompanhada de mais de 300 desenhos e endereçada ao rei da Espanha, na qual ele advoga por uma melhor governança e pela autonomia andina no vice-reinado do Peru. O documento é uma “performance epistolar” impressionante (para usar um termo de Joseph Roach), e Cusicanqui se utiliza dele para nos lembra que os estudos da cultura visual têm uma longa história nas Américas.  Cusicanqui chama a nossa atenção para a função dos desenhos no texto, insistindo que eles não cumprem uma função meramente ilustrativa, como alguns poderiam supor, mas sim estabelecem uma “teoria Andina” sobre o próprio sistema colonial. Em El primer nueva corónica, Cusicanqui encontra um importante precedente para os usos constantes e contemporâneos da visualidade como uma forma de intervenção crítica na esfera política.

Esther Gabara segue uma tradição mais contemporânea de estudos da performance/cultura visual na América Latina, traçando uma história da qual a maioria dos acadêmicos dessas áreas nos EUA provavelmente desconhecem. Focando em particular na emergência dos estudos culturais latino-americanos, Gabara ilustra a importância da crítica visual/da performance para essa tradição acadêmica, e sublinha o valor das produções de conhecimento locais. Através de uma variedade de exemplos acadêmicos e artísticos, Gabara sugere o surgimento de uma área para a qual a critica das epistemologias modernas é central: se a epistemologia moderna privilegia o conhecimento adquirido por “olhar para”, a sua crítica contrapõe formas de conhecimento e crítica ao “olhar de”.

A visualidade, escreve Mirzoeff, “é o meio através do qual os detentores da autoridade alegam enxergar os fluxos da história, validando-se no processo”.  Tanto Mirzoeff quanto Carlos Ossa refletem sobre formações hegemônicas de visualidade, e sobre como elas constroem e interpelam os sujeitos da visão. Mirzoeff descreve uma ideologia visual abrangente que inter-articula os discursos contemporâneos de contra-insurgência com discursos de imigração e segurança pátria nos Estados Unidos. Carlos Ossa, por sua vez, considera as hegemonias de estado em relação à televisualidade contemporânea, um lugar no qual a interpelação do estado é frequentemente ultrapassada pela do mercado. “A representação não desapareceu, como alguns podem querer acreditar”, escreve Ossa, “ela mudou de estratégias e vocabulários, apostando na recombinação e na ruptura como as montagens retóricas que fornecem às narrativas da mídia a oportunidade de quebras e velocidade.” Ossa interroga a irrupção, o funcionamento, e o impacto da biografia narrativa dentro do processo de formação de sujeito mediado pela (tele)visualidade na modernidade do capitalismo tardio. Citando tanto o deslize entre o público e o privado quanto as tensões entre a intimidade individual e as formas coletivas de pertencimento, ele reflete sobre a natureza política da visibilidade, e sobre como a oralidade confessional, a criminalização seletiva e o sentimentalismo excessivo, características da forma e da propaganda da televisualidade contemporânea, degradam a cidadania e fecham possibilidades para o surgimento de sujeitos emancipadores.

A proliferação na disseminação de imagens televisivas depois do terremoto no Haiti, em Janeiro de 2010, nos levaram a refletir no dossiê dessa edição sobre práticas que informam, complicam ou interrompem a representação visual do Haiti em domínios sociais e políticos mais amplos. O terremoto provocou uma reavaliação, não só das condições estruturais de enorme pobreza e desigualdade interna na ilha, mas também das histórias políticas e sociais que produziram e sustentaram essas desigualdades nos níveis nacional, regional e global, assim como das políticas mais amplas de colonialismo e raça que relegaram o Haiti, no passado e no presente, a um regime particular de visibilidade/invisibilidade no palco mundial. O nosso dossiê, “Enxergando o Haiti”, convida os contribuintes a escolherem uma imagem como base para um comentário sobre como o registro visual nos instrui a enxergar, ou a não enxergar, os passado e os legados particulares do Haiti.

A geopolítica do conhecimento visual é uma preocupação central para muitos dos outros contribuintes, que analisam o que o arquiteto Teddy Cruz chama de “limiares críticos” das Américas, incluindo zonas de fronteira, mas também “setores locais onde conflitos são gerados por políticas discriminatórias de zoneamento e desenvolvimento econômico”.  Tanto Teddy Cruz quanto Karen Till demonstram a necessidade de alterar a representação visual desses limiares críticos para poder entender, representar, e finalmente alterar as dinâmicas de poder que estão por trás deles. Karen Till coloca da seguinte maneira: “Se os planejadores urbanos e os políticos quiserem levar a sério os seus discursos de sustentabilidade social e ambiental de maneira a incluir a justiça social, as formas de visualizar e representar o espaço urbano precisam mudar”. Escrevendo sobre Bogotá hoje, Till foca em várias práticas visuais criativas que fornecem exatamente esses imaginários espaciais alternativos. Cruz culpa as nossas “instituições de representação” pela incapacidade de “resolver as tensões entre as estratégias urbanas de desenvolvimentos social, que acontecem de cima para baixo, e as táticas do ativismo comunitário, que acontecem de baixo para cima.” Como resposta, Cruz produz novos mapas críticos que tentam capturar o movimento e a migração de pessoas e de bens pela fronteira, junto com as “micro-heterotopias” e o “urbanismo clandestino” que caracterizam hoje a região fronteiriça de San Diego/Tijuana.

Nestor García Canclini volta a nossa atenção para os limites da estética, sugerindo que a arte entrou em um período “pós-autônomo”. Se a arte lutou no passado com a problemática da transgressão, de maneira que todo ato que procurava transgredir os limites da arte (a moldura do quadro, o museu, a materialidade do objeto artístico) simultaneamente reafirmava esse próprio limite, hoje a arte enfrenta a dissolução gradual das instituições e dos discursos que policiam as suas fronteiras.  Quais são as consequências desse momento “pós-autônomo”? Canclini argumenta que o melhor seria considerar os artistas como praticantes do “dissenso”, no rico sentido que Jacques Rancière dá a esse termo. Assim como Borges define estética como “imanência” — uma maneira de praticar a arte com intencionalidade mas sem uma intenção declarada — Rancière sugere que a arte é um modo de engajamento que altera o que ele chama de “a distribuição do sensível”.  O crítico Tanke explica que qualquer distribuição dada — o que Rancière chama de um “regime” — “delimita por antecipação formas de participação e subjetividade, ao definir em primeiro lugar o que é visível e o que é invisível, audível e inaudível, dito e não dito. Como Rancière repetidamente argumenta, a própria construção dessas oposições binárias é política, na medida em que elas definem maneiras de ser, isto é, formas de subjetividade” (Tanke 2010: 5). Para Rancière, o “discurso do consenso” na política assegura que “a ação política é circunscrita por uma série de equivalências econômicas, financeiras, demográficas e geo-estratégicas em larga escala” (Rancière 2000: 123). O “consenso” aqui não se refere a propostas políticas de direita ou esquerda, mas sim aos termos que definem como o sensível em si é constituído:  “O ideal do consenso afirma que as coisas essenciais para uma vida em comum dependem de equilíbrios objetivos em direção aos quais nós todos podemos nos orientar” (2000: 123). O dissenso, por sua vez, rejeita a idéia de uma ordem global em relação à qual todos nós nos posicionamos. O dissenso dá nome a uma perturbação no próprio sensível:

 “A essência do político é o dissenso; mas o dissenso não é a oposição de interesses e opiniões. Ele é uma fenda no sensível: o político persiste enquanto houver um dissenso sobre o que é dado em uma situação particular, sobre o que é visível e sobre o que pode ser dito, sobre quem tem o direito de ver ou dizer o que é dado” (2000: 124)

Nós poderíamos traduzir a idéia de representação sem reprodução de Phelan como a produção de uma fenda no sensível: ao reconhecermos o que vemos, nós questionamos os parâmetros de interpretação que nós, caso contrário, usaríamos. Canclini explora o potencial do dissenso artístico nas obras de Cildo Meireles, León Ferrare e Carlos Amorales, encontrando no último um exemplo particularmente interessante de “significantes à espera de um significado”.

O dissenso nos oferece maneiras produtivas para pensar sobre as contribuições artísticas nessa edição de e-misférica, os trabalhos do colombiano Wilson Diaz, da chilena Lotty Rosenfeld, e da emergente parceria teatral 2boys.tv, do Canadá. Em cada uma deles, há um engajamento metódico com os sentidos, indo além do que nós tipicamente esperamos na arte visual ou na performance, e explorando a política da experiência sensória em si. Em Estádio Chile, Lotty Rosenfeld nos transporta do registro visual para o auditivo, formando um arquivo com o seu próprio trabalho visual e seu engajamento com a ditadura, através da sua documentação auditiva. Ela nos leva a fazer uma pergunta impossível: como nós poderíamos ouvir o visual? Experimentando com imposições repentinas de escuridão e silêncio, ela nos pede para re-sentir o que sabemos, ouvimos, e achamos que vemos nas histórias com as quais o seu trabalho se engajou de maneira tão célebre. Wilson Diaz, por sua vez, trabalha com a vida sensória da semente de coca como uma maneira de engajamento com a política profunda e violenta do tráfego de drogas na Colômbia. Em Vientre alquilado (Ventre alugado, 2000), o artista engoliu sementes de coca antes de viajar para participar de um workshop artístico em Curaçao; ao chegar lá, ele defecou as sementes, plantou-as, e cuidou delas durante a duração do workshop. Enquanto a ação abre perguntas sobre a criminalização das sementes de coca (é a mesma coisa se uma “mula” carrega cocaína em seu estômago para o tráfego de drogas e se um artista carrega para fazer arte?), a peça revela o interesse do artista na materialidade sensória radical do seu trabalho: a relação entre as sementes e o ventre, as sementes e a terra e a vida da planta em si como o ponto de partida para a intervenção artística. 2boys.tv, por sua vez, exploram economias do olhar no seu jogo meticuloso entre performance ao vivo e microprojeção em vídeo, forçando os limites da ilusão trompe l’oeil. Phobophilia (2009) é uma exploração profunda dos regimes escópico da tortura. Analisando a performance, Ramon Rivera Servera argumenta que “as imagens de tortura que Phobophilia apresenta apontam para a relação conflituosa entre a economia da representação como evidência da verdade (a força jurídica da fotografia) e a dimensão erótica do papel do espectador, mais eticamente ambivalente.”

Com esses ensaios e trabalhos artísticos, nós queremos, portanto, “desestabilizar visualidades” em, e através da, performance — isto é, explorar formas em que a conjectura da performance e do visual podem nos ajudar a atingir novas maneiras de entender regimes visuais, e novas maneiras de atravessá-los. Como Richard e Phelan, nós exploramos os momentos performáticos e teatrais em que a representação desestabiliza a sua relação com a reprodução e abre caminho para uma outra forma de ver.

Traduzido por Marcos Steuernagel


Obras Citadas

Mirzoeff, Nicholas. 2001. “Intervisuality.” In Annette W. Balkema and Henk Slager, Exploding aesthetics. Lier en boog series, v. 16. (Amsterdam: Rodopi) 124–139.

Phelan, Peggy. 2003. Unmarked: the politics of performance. New York and London: Routledge.

Rancière, Jacques, and Davide Panagia. 2000. "Dissenting Words: A Conversation with Jacques Rancière." Diacritics. 30 (2): 113-126. http://www.jstor.org/stable/1566474

Richard, Nelly. 2006. “Estudios visuales y políticas de la mirada” in Educar la mirada: Políticas y pedagogías de la imagen, ed. Ines Dussel and Daniela Gutiérrez (Buenos Aires: Manatial, Flasco) 97–109.

Tanke, Joseph J. 2010. "Why Rancière Now?" Journal of Aesthetic Education. 44 (2): 1–17.

“Visual Culture Questionnaire.” 1996. October 77 (Summer) 25–70. http://www.jstor.org/stable/778959