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A narração do archivo

Alberto Madrid Letelier

A obra de Lotty Rosenfeld, “Estadio Chile I, II, III” se inscreve no marco da proposta curatorial da Trienal do Chile, a qual segundo Ticio Escobar, seu curador geral: “parte da figura do mapa do país, considerado em si mesma uma imagem limítrofe, uma linha vertical, que condensa distintas fronteiras e que, ao deslocar-se virtualmente, projeta uma faixa que cobre o cone sul latinoamericano. Este mapa foi dividido em três zonas, sem a pretensão de representar regiões, mas sim marcar pontos adequados para desenvolver melhor o conceito da Trienal. Cada uma destas zonas é sujeita a contingências históricas, políticas e cultura próprias…”

Esta citação me permite interpretar e contextualizar a obra de Rosenfeld tendo em consideração a figura da verticalidade do país associada ao sinal de trânsito, no qual ela inicialmente intervém, resignificando-o. Do mesmo modo, a ocupação temporal que Rosenfeld faz do território com o entrecruzamento de materiais de arquivo de sua própria obra produz uma lição de geografia1, não só da representação do território em sua morfologia e topografia, mas também dos acontecimentos residuais que ficam fora da história oficial, em analogia com a edição que faz do making-off de sua obra. Daí a seleção de instituições e lugares que triangulam o poder, a atividade econômica e o espectáculo como outra forma de tensionar os limites da arte na atualidade.

Recupero aqui a demarcação territorial do primeiro gesto realizado por Lotty Rosenfeld em 1979, quando, mediante uma ação mínima, modifica a sinalização de trânsito produzindo outro signo: +, logo reelaborado esta ação em um vídeo que a registra e que se transformará na matriz do arquivo de Rosenfeld; este aquivo que vai resignificando, através do espaço e do tempo, cruzando fronteiras, entrecruzando significações, construindo novos sentidos a partir do corpo da artista e da obra.

Esse signo, iniciado como ato solitário e alterando a ordenação do trânsito como gesto transgressor no contexto de uma ditadura militar, demarcava também os limites do “fora da visão”, através do registro fotográfico e videográfico das ações de ocupação e intervenções, deslocando fronteiras.

Rosenfeld segue marcando e cruzando territórios até hoje. Uma memória atravessa a ação coletiva com o grupo CADA “No +”, de 1983, logo em trabalhos individuais que se extendem até 1998, como parte da propaganda do plebiscito e, em outra década, na Documenta de Kassel, 2007.

Seria possível caracterizar a obra de Lotty Rosenfeld como o rastro da memória desse signo que representa seu hipotexto e a intertextualidade que vai construindo, a partir dessa imagem, novas contextualizações em que recicla seu arquivo.

Locações

Rosenfeld realiza três ocupações em território nacional: duas em Santiago e outra em Lota, com a designação “Estadio Chile I, II, III”. Suas três versões podem ser consideradas como uma lição de geografia em seu caráter geopolítico. Os espaços são selecionados por suas cargas de memória, e como agentes da experiência da recepção, a qual é reativada através de sons e imagens.

A lição começa com “Estadio Chile I”, quando, no perímetro do edifício da Bolsa de Comércio de Santiago, ela projeta uma imagem com o nome “Lotty Rosenfeld” e a data “1982”. Esta data pode ser considerada como uma nota de rodapé, cuja arqueologia é necessário reconstruir, já que funciona intertextualmente com outra obra, “Una herida americana”. Esta corresponde ao cruzamento de dois registros: o primero refere-se a dois monitores que se localizam sobre uma grande mesa na Bolsa: um com a vídeo-gravação da estrada panamericana na altura do deserto do Atacama, e no outro monitor o vídeo do registro da ação do sinal de + realizado em frente à Casa Branca em Washington. “Una herida americana” opera como uma citação em abismo, citação da citação, do registro de um momento da atividade financeira em analogia com a transação, exibindo ações em um entrecruzamento simbólico entre o espaço de especulação econômica e o espaço da especulação discursiva.

A projeção inscrita do nome e da data se amplia em outras indicações com o áudio instalado no lugar. É reutilizado aqui o áudio do vídeo “El empeño americano”, 1998, obra de Rosenfeld com ecos político-econômicos na qual se registram e reciclam imagens da câmera de segurança de uma repartição pública conhecida como a Tía Rica, onde os cidadãos empenhavam seus bens durante a crise econômica.

“Estadio Chile II” se realiza em outro perímetro de Santiago, no próprio recinto esportivo que era tradicionalmente chamado assim, mas que em 2004 foi denominado Estadio Víctor Jara.

A entrada se dá pelos fundos, por uma pequena porta – detalhe que remete aos temas que interessam a Rosenfeld; o espaço se encontra vazio e em penumbras. Se na versão anterior o claro-escuro era na fachada exterior, aqui o recinto esportivo é ocupado em seu interior, e não há projeção de imagens.

À medida em que se vai percorrendo o espaço, o espectador é invadido pelo áudio de obras anteriores, que o acompanham por todo o percurso durante uma hora, modificando a história do lugar. O estádio vira um espaço polifônico de relatos que se entrecruzam com sons do interior e do exterior do prédio. O som mais impressionante, que adentra o corpo, é o de uma mulher que arqueja reproduzindo um esforço físico que se confunde com uma corrida ou um parto; ou outro, de outra mulher tratando de articular uma frase interrompida por um estouro e por vozes num grito de gol, ou por uma contagem de votos. O espectador só é interrompido no labirinto de vozes pelo áudio que pergunta o seu nome, idade, ocupação. Desse modo, o recinto é uma caixa de resonância aonde o espectador decifra informação e sentidos nas imagens mentais de sua memória e da própria história.

A montagem luminosa e sonora traduz os vestígios físicos que necessitam da memória do espectador para sua ativação. O acontecimento que Rosenfeld invoca/convoca no percurso, para além de uma volta ao passado do estádio como lugar de detenção, tortura e morte, são os ruídos da história que se atualizam mediante o áudio, fazendo do recinto algo equivalente a um campo de batalha. Se ontem o que aclamava era a violência ideológica, hoje é a violência do consumo.

Por outro lado, Rosenfeld complexifica a carga literal do lugar ao pôr em crise as possíveis expectativas do espectador, como é o caso da chegada ao local onde se deu morto Víctor Jara, aonde cessa toda representação. (Adorno já falava do que é irrepresentável na dor.)

A peregrinação continua por outras dependências do estádio, aonde o áudio da obra de Rosenfeld põe em cena e atualiza os acontecimentos da memória, ainda que sem resolvê-los.

“Estadio Chile III”, Lota. Numa analogia com o correlato da Trienal: territórios e limites da arte, descentralização da geografia, que se transfere para a cidade de Lota, no sul do país. Região historicamente vinculada à extração de carbono, esta atividade produtiva que foi descontinuada a partir de 1997. A memória do lugar, entre outras obras, está ilustrada nos relatos de Baldomero Lillo, que trabalhou em uma das repartições da mina.

O lugar selecionado é a mina El Chiflón del Diablo, espaço que atualmente funciona como ponto turístico, depois da desativação. Aqui se encontra parte da estenografía do filme “Sub-terra”, que teve como locação este mesmo lugar, o qual explora o processo de reunificação e reconversão de uso a cargo dos mineiros.

Para se ter acesso ao espaço onde se encontra a obra “Estadio Chile, III” é necessário usar um capacete-lanterna e descer numa jaula igual a que transportava os mineiros até seus locais de trabalho no subsolo da mina, abaixo do mar.

Uma vez lá embaixo, se acendem as lanternas, tendo o espectador a visão de um cíclope. As primeiras referências que se revelam são a perda da luz do dia; e essa relação claro-escuro vai lentamente re-condicionando a percepção da escuridão e da umidade para dar lugar à audição como sentido dominante.

A tradição da imagem videográfica da obra de Rosenfeld se delinea na audição do áudio de alguns de seus vídeos. O espectador assiste a uma ocupação sonora, as vozes de ontem sobre a atividade dos mineiros é interrompida por sons simbólicos, operando como outra forma de conhecimento. A acomodação dos sentidos é interrompida quando é sugerido apagar as lanternas, produzindo-se a escuridão e ausência de referência, que coincide com o silêncio do áudio.

A cegueira se compensa no ritmo da respiração e na busca inconsciente por apoio, sucedendo-se então a emergência de imagens mentais do arquivo pessoal.

Na volta, à vista do cíclope, recuperamos em silêncio o reconhecimento do retorno à zona da jaula, junto ao intercâmbio das primeiras impressões. Indiquei em outro texto que uma uma deformação referencial recordei do título da exposição de José Balmes: “Lota, el silencio” (1997) que também fez seu sentido a partir do vivido. Também com o passar dos dias releio os contos de Baldomero Lillo, que me servem para evocar imagens desse percurso e também como fonte de informação primária para a interpretação da obra de Rosenfeld.

Making-of

Em “Estadio Chile I, II, III”, Rosenfeld produz suas ocupações na lógica do making-of. Através da reciclagem e da recontextualização de sua obra, põe em movimento o arquivo de sua videografia. O making-of funciona como metáfora, já que o espectador preferencialmente “ouviu” mais que “viu”, gerando assim um sistema de leitura diferente das imagens dominantes na atualidade.

A obra funciona por uma espécie de remissão: a partir do som se evocam as imagens, à semelhança da atividade da memória, o que se traduz na edição dos lugares. A ocupação sonora deve ser entendida como espacialização do relato.

Na primeira ocupação, a inscrição do narrador se establece na projeção da autoria e de uma data na fachada da instituição, e com o áudio se arma um entrecruzamento de leituras.

Na segunda, o narrador dá lugar à personagem, mas no paradoxo do acontecimento irrepresentável. O efeito se reitera na terceira experiência, com a ausência dos corpos na inatividade das fainas, devolvendo ao espectador o trabalho da construção dos sentidos nos materiais dispostos.

A característica da narração de Rosenfeld é o entrecruzamento, o que permite em suas ocupações um relato polifônico, establecendo assim ressonâncias com todos os lugares onde interviu, que podem ser lidos intertextualmente no som do corpo ofegante que atua como correlato do percurso. Da mesma forma, parte do sistema de leitura é a figura do cronotropo das relações espaciais: exterior–interior, acima–abaixo, superfície–subsolo, deslocamento–marcação, para pôr em cena a lição de geografia sobre a representação dos acontecimentos dessa trama invisível do poder e sua demarcação.

No rastro de mais de três décadas do sinal de +, percebe-se que as dinâmicas do poder e suas práticas econômicas continuam na acumulação, produzindo mais desequilíbrio. Donde a data “1982”, como nota de rodapé para reconstruir sua arqueologia e a resignificação atual de um modelo de bem-estar baseado na inequidade e na estimulação do consumismo.

A trilogia “Estadio Chile” é uma materialização do estado do país, no entrecruzamento de temporalidades e espaços que triangulam acontecimentos geopolíticos, nos relatos superpostos de memórias cada dia mais invisibilizadas pelo sobre-carregamento de imagens midiáticas.



1 Intertextualmente cito e desloco a pintura de Alfredo Valenzuela Puelma, “Lección de geografía”.